Construção do Estado Nacional: cidadania/trabalho – dimensão econômica

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Carteira de trabalho (Foto: Marcello Casal Jr./ABr)
Carteira de trabalho (foto de Marcello Casal Jr., ABr)

“Quando uma utopia desmorona, é toda a circulação de valores que regulam a dinâmica social e o sentido de suas práticas que entra em crise. É esta a crise que vivemos”, escreveu em 1988, às vésperas da edição do decálogo conhecido como Consenso de Washington (1989), o filósofo austro-francês André Gorz (1923–2007), de pseudônimo Michel Bosquet. Esta citação está na contracapa da edição brasileira de Métamorphoses du travail, Quête du sens: critique de la raison économique (Metamorfoses do Trabalho, Crítica da Razão Econômica, tradução de Ana Montoia para Annablume editora, SP, 2007, 2ª edição).

Quase simultaneamente, o louvor do trabalho é considerado “uma cortina de gás lacrimogêneo para melhor ocultar o trabalhador”, como escreveram os editores da Achiamé na orelha de sua publicação de 1987, ABC do Sindicalismo Revolucionário, de Edgar Rodrigues. E hoje o trabalho se transforma na escravidão dos microempreendedores individuais (MEIs, Lei Complementar 128/2008) e demais uberizados pelo triunfo do neoliberalismo.

É sobre este importante fator da construção da cidadania, o trabalho, integrante da existência, indispensável elemento para erigirmos o Estado Nacional Brasileiro, que trataremos nas suas dimensões econômicas, política e sociocultural.

Trabalho não é apenas um meio de prover a subsistência. É também uma fonte de realização. E junto com o trabalho também se encontra o direito ao lazer. E não se identifica, como buscam fazer os liberais em todos os tempos, com o ócio ou a vagabundagem. Lazer também é fonte de imaginação e de produção econômica. Que cresce à medida que a sociedade deixa para as máquinas os trabalhos repetitivos, rotineiros, não criativos.

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Porém este vício do financismo, que tem origem numa distinção social dos donos dos poderes e seus representantes para os demais membros da sociedade, é verificável em vários momentos históricos. Eles desconfiguram o trabalho, o desconstroem, o depreciam, o descaracterizam com discursos farsantes, com mentiras e dissimulações, como denunciam os editores da Achiamé.

Vamos nos restringir ao Brasil, que é nosso único interesse. Nos primórdios de nossa História, temos o exemplo do rico português Duarte Coelho (1485–1554), que recebeu do rei João III a Capitania de Pernambuco (atuais estados de Pernambuco e Alagoas) e procurou desenvolver a agroindústria canavieira com capital judeu e protestante neerlandês, oriundo do tráfico de escravos, para o financiamento do empreendimento.

Lutou contra índios e homens ligados ao comércio de pau-brasil, procurando “desqualificar os concorrentes pelo domínio da mão de obra”, discorre Jorge Caldeira (Brasil, A História Contada por Quem Viu, Mameluco, SP, 2008). “Não estão com os trabalhos e fadigas e nos perigos e derramamentos de sangue em que eu estou” e “por extraírem sua madeira, importunam tanto os índios e prometem-lhe tanta coisa fora de ordem, que metem a terra em desordem, tirando-a da ordem em que eu a tenho posto”, da carta de Duarte Coelho a João III.

O trabalho, de algum modo valorizado, será objeto de invalidação pelo poder, como se desvenda na carta de Duarte Coelho, quando concorrentes procuram ser mais generosos com os índios. Os epítetos de desordeiros, perturbadores da ordem, desorganizadores da sociedade, populistas acompanharão os que se aventurarem a beneficiar os trabalhadores. Serão depois pelegos, comunistas, arruaceiros e colocados na prisão.

O Brasil nasce, como Estado, escravagista. Máxima desvalorização do trabalho, identificado como sem dignidade, destituído de qualquer inteligência. Em 1755, o Marquês de Pombal torna a escravidão indígena oficialmente extinta. A africana o será mais de um século depois, em 1888. Porém a pressão da nova economia, notadamente a inglesa, aboliu, em 1850, o tráfico negreiro, restando ao escravismo brasileiro o crescimento vegetativo ou pelo contrabando. A economia escravagista também se tornava antieconômica e, ao fim do século XIX, estava declinando em sua última grande área de manutenção: as fazendas de café na região Sudeste.

Neste final do Império, as relações de trabalho assalariado já se impunham na economia, e o abolicionismo, na política. Mesmo incipiente, iniciava-se a indústria, como a têxtil, e aquelas que a Guerra do Paraguai mostrara indispensáveis para o país. Apesar disso e por toda Primeira República (1889–1930), as dificuldades de uma economia dependente não fizeram surgir soluções de valorização do trabalho, nas duas mais significativas vertentes: o ensino e a ênfase na industrialização.

A inquietação militar surgida ainda na Primeira República, em destaque os movimentos da década de 1920, em boa parte também se deviam ao atraso político e socioeconômico que a economia escravagista trouxera ao Brasil. Uma economia fundamentalmente fundiária e financista tornava-se oposta à industrialização e, como seria de esperar, com reflexo na área política, na luta pelo poder, que será uma característica das disputas no Brasil, com e pós Vargas.

O primeiro e efetivo reconhecimento do trabalho será devido a Getúlio Vargas, dirigente no Governo Provisório (1930–1934), após a vitória na revolução cívico-militar de 1930. As criações, em 14 de novembro de 1930, do Ministério da Educação e Saúde Pública e do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, em 26 de novembro de 1930, foram o sinal claro que o Brasil escravagista havia encontrado um opositor. A luta contra o reconhecimento do trabalho, uma necessidade do capital industrial e do avanço civilizatório, percorrerá toda história até os golpes da segunda década do século XXI.

É necessário termos bem compreendida e identificada as partes neste confronto que, por um século, tem conseguido avanços e permitido retrocessos na construção do Estado Nacional soberano e cidadão.

Inicialmente, a sujeição colonial tem sido uma das marcas mais danosas de nossa cultura. Ela está na pedagogia e em valores até ridículos, mas que se perpetuam na sociedade. Uma destas questões é a corrupção. Este comportamento individual ou de grupos não se origina em falhas ou disfunções comportamentais ou morais. Ela tem origem no valor do dinheiro, na posse de bens não essenciais à existência, no rentismo e no que ficou dos séculos de escravismo, agora atualizados e reimplantados na economia dos ubers e “empreendedores”.

Outro elemento é a valorização do trabalho pelos salários. No Brasil, o salário mínimo, antiga reivindicação dos trabalhadores desde a greve geral de 1917, foi criado no governo de Vargas, com a Lei 185, de janeiro de 1936, e Decreto-Lei 399, de abril de 1938. Já seus valores foram definidos no Decreto-Lei 2162, de 1º de maio de 1940.

Um fato a ser registrado nesse sentido é que o valor do salário mínimo não era o mesmo em todo o país. O Brasil foi dividido em 22 regiões e 50 sub-regiões. Desta forma, para cada sub-região havia um valor estipulado, ou seja, havia 14 diferentes valores de salários mínimos na sua criação. A unificação dos valores ocorreu somente em maio de 1984.

“Trabalhadores do Brasil, aqui estou, como de outras vezes, para compartilhar as vossas comemorações e testemunhar o apreço em que tenho o homem de trabalho como colaborador direto da obra de reconstrução política e econômica da Pátria. Não distingo, na valorização do esforço construtivo, o operário fabril do técnico de direção, do engenheiro especializado, do médico, do advogado, do industrial ou do agricultor. O salário, ou outra forma de remuneração, não constitui mais do que um meio próprio a um fim, e esse fim é, objetivamente, a criação da riqueza nacional e o surto de maiores possibilidades à nossa civilização” (Getúlio Vargas, Discurso em 1º de maio de 1940, apud senador Paulo Paim, Salário Mínimo, uma história de luta, Senado Federal, Brasília, novembro de 2005).

Ao longo do século XX, o salário mínimo teve acréscimos e reduções por diversas ocasiões. A partir de 1962, com a aceleração da inflação, ele começou a perder seu poder de compra, apesar dos reajustes durante o governo de João Goulart (1961–1964). Nos governos militares (1964–1985), o governo passou a adotar uma política que visava manter o salário médio. Desde 1994, após a criação do Plano Real, houve mais de 24 reajustes nesta breve história do salário mínimo.

Com os golpes nas conquistas e nos direitos trabalhistas e previdenciários, com a desintegração da estrutura de poder que vem ocorrendo desde a promulgação da Constituição de 1988, quer sob a forma de Emendas Constitucionais, de decisões judiciais, de fraudes eleitorais ou, simplesmente, por golpes parlamentares, ameaças militares, policiais e de ativos grupos criminosos, dominando parcelas do território nacional, chegamos nesta terceira década do século 21 em condições muito parecidas àquelas de mais de 100 anos atrás. Ou seja, em condições de vermos surgir uma Revolução como a de 1930.

 

Felipe Maruf Quintas é doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense.

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

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