O estatuto social e a concepção do trabalho modificaram-se sobremaneira ao longo dos séculos. Assim expõe a filósofa alemã Hannah Arendt no monumental livro A Condição Humana. Na Antiguidade, havia uma diferenciação profunda entre o labor (ponein, em grego), entendido como esforço corporal visando a manutenção da vida, e a obra (ergazesthai, em grego), como realização do engenho humano legada para a posteridade. O labor era visto como sendo de natureza servil e, portanto, indigno de ser feito por homens livres, isto é, os cidadãos, enquanto a obra era valorizada como sendo própria dos poetas e artesãos.
A escravidão, assim, não era uma instituição propriamente econômica, com finalidades de acumulação, mas a salvaguarda, em uma sociedade estratificada, da liberdade dos cidadãos à custa dos escravos, os não cidadãos. A liberdade política dos cidadãos, consubstanciada nas obras de honra à cidade, aos deuses e aos heróis, teria como condição o alheamento deles em relação ao labor, que, sendo necessário para a reprodução vital da espécie, seria feito por aqueles que não compartilhassem do pertencimento cívico.
Esse panorama altera-se profundamente na modernidade, em que o trabalho, como fator de geração das riquezas, a serem acumuladas pela emergente classe mercantil-banqueira-industrial (chamada genérica e simplificadamente de burguesia), começa a ser valorizado pelo seu fundamento econômico. A distinção entre labor e obra é apagada, com a semântica de ambos unificada no termo trabalho.
Da pena do filósofo John Locke, prócer do liberalismo e do colonialismo, o trabalho, como extensão do corpo humano ao mundo, passa a ser visto como fundamento da propriedade, requisito da cidadania. Na ascendente ordem capitalista, somente os proprietários seriam livres, na medida em que a propriedade derivaria da plena autonomia sobre o próprio corpo. A intimidade corporal, que a Antiguidade interpretava como tendo atributos servis e bania da esfera pública, passa a ser o princípio de legitimação das desigualdades políticas e econômicas sob o capitalismo.
Essa concepção foi aprofundada pelos iluministas, que dividiam a sociedade entre aqueles que trabalhavam e eram úteis, e aqueles que não trabalhavam e eram inúteis, sendo o trabalho entendido como gerador de riquezas, e a aquisição de riquezas, o objetivo central da ordem burguesa. Somente possuíam dignidade social aqueles que trabalhassem.
Para Marx, o trabalho era produtor de relações sociais, não apenas no âmbito econômico
Adam Smith, principal representante do iluminismo escocês, foi além dos seus contemporâneos ao vislumbrar, na divisão e na especialização do trabalho, isto é, na multiplicação de funções laborais, o motor da riqueza das nações. Sendo assim, a classe produtiva seria aquela que realmente colocasse “a mão na massa”, não a que contratasse outros para tanto.
Pela primeira vez, reconhecia-se teoricamente uma diferenciação entre aqueles que trabalhavam e aqueles que, ligados diretamente à esfera de produção, comandavam o trabalho. Para Smith, caberia, então, ao Estado, como avalista institucional da propensão “natural” do homem a trabalhar e barganhar os frutos do seu trabalho, a função de proteger os assalariados da voracidade dos empregadores, antecipando, dessa forma, o moderno Estado social.
A concepção smithiana de trabalho seria aprofundada por Karl Marx, para quem o trabalho, mais do que produtor de riquezas, era produtor de relações sociais, não apenas no âmbito econômico, enfatizado por Smith, mas em todos os domínios. As formas de trabalho definiriam o que Marx chamou “formações econômico-sociais”, manifestações históricas do modo existencial coletivo que englobariam a configuração do poder, da cultura, dos afetos, de tudo enfim.
Se a modernidade não demorou em valorizar o trabalho e alçá-lo a fundamento ontológico do ser humano, o mesmo não ocorreu na prática político-institucional. O capitalismo industrial floresce a custa da extrema exploração do trabalho, em muitos casos de forma análoga à escravidão, de homens, mulheres e crianças, nos centros metropolitanos, e do escravismo colonial, nas periferias ultramarinas. O trabalho que, em teoria, dignificava o homem, na realidade empírica o aviltava. O esplendor técnico da revolução industrial baseou-se na degradação do ser humano em todos os cantos do planeta, alcançados pelo capitalismo.
Entre o final do século XIX e meados do século XX, tal panorama modifica-se profundamente, não apenas em razão da organização político-sindical dos trabalhadores, mas, igualmente, da emergência de projetos nacionalistas que, tendo por meta unificar os respectivos países em torno da industrialização e do consequente aumento do poderio econômico e militar, não poderiam deixar de incorporar os trabalhadores à repartição das riquezas por ele produzidas e, assim, necessariamente, valorizar o trabalhador como modelo social.
Daí o mundo viu nascer o moderno Estado social, primeiramente na Alemanha de Bismarck, em seguida na Oceania e, no século XX, em praticamente todo o Atlântico Norte e em grande parte de suas periferias, como o Brasil (Getúlio Vargas), Argentina (Perón), México (Constituição de 1917, Cárdenas), Índia (Nehru), Egito (Nasser), Argélia (Boumedienne) etc.
No âmbito da teoria econômica, o keynesianismo, ao consagrar o pleno-emprego como meta política superior, alçou o trabalho como aspecto central da existência social. A noção de cidadania, com o tríptico marshalliano dos direitos civis, políticos e sociais, inclui de vez o trabalho como seu elemento fundante, derivando daí a defesa da sua proteção pelo poder público.
Porém, tudo isso foi possível em decorrência da supremacia do industrialismo na formação material dos países. A tal ponto o industrialismo e o capitalismo eram identificados que o próprio Marx alcunhou o capitalismo de modo de produção.
Na verdade, como ele mesmo havia entendido, o capitalismo não tinha por finalidade a produção de mercadorias, mas a acumulação de dinheiro, tanto mais intensa quanto mais dispensasse a produção material através de artifícios bursáteis-especulativos, realizando o objetivo principal de ganhar dinheiro com custos mínimos, ou seja, fazer dinheiro com o próprio dinheiro.
Subordinação dos projetos nacionais às finanças não é fenômeno universal
O industrialismo identifica-se assim, e cada vez mais, com o financismo. Inicialmente a pretexto de obtenção de crédito – para a realização de investimentos em escala cada vez maior, sobretudo após o choque do petróleo em 1973 – porém ensejando maior controle dos barões do dinheiro sobre a produção e a consequente subordinação dessa aos intuitos especulativos daqueles.
A partir daí, o mundo capitalista assiste, em maior ou menor medida, um processo contínuo de desmaterialização da economia e de destruição de funções, sem ter elaborado uma concepção de pertencimento social que prescinda do trabalho para a dignificação do ser humano.
Reside aí grande parte do mal-estar contemporâneo, persistente mesmo em períodos de dito “crescimento econômico”, pautado cada vez mais pelas finanças improdutivas.
Não se pense, todavia, que esse é um fenômeno universal. Na China, na Índia, no Vietnã, na Indonésia, na Arábia Saudita, na Nigéria, que juntos reúnem quase metade da humanidade, os governos nacionais mantêm-se empenhados, e cada vez mais, na criação de funções produtivas e de oportunidades de emprego e trabalho para um número crescente de pessoas. O que passa, necessariamente, pela subordinação das finanças a projetos nacionais de desenvolvimento, e não o oposto, como ocorre no Ocidente capitalista e neoliberal.
No caso do Brasil, que não havia chegado a se integrar completamente pela industrialização, a chamada desindustrialização provoca efeitos ainda mais devastadores, interrompendo e degradando uma série de processos sociais planejados para se estruturar em torno da industrialização, como, por exemplo, a formação em massa de quadros profissionais de nível técnico e superior.
Tanto pior é a situação brasileira pelo fato de ter havido uma concentração demográfica nas regiões outrora industriais, hoje decadentes, sem a possibilidade de transferência de população para o Centro-Oeste, eixo dinâmico contemporâneo da geração de riquezas, mas incapaz, pela natureza da agroindústria lá desenvolvida, de absorver o excedente de mão de obra desperdiçado pela extinção das cadeias industriais e de serviços.
Tal situação revela-se absolutamente desastrosa, pois o Brasil, além de ser o país mais rico do mundo em recursos naturais e mais capaz de produzir em larga escala, com seus próprios recursos, todos os bens possíveis e imagináveis, também experimenta hoje um ótimo demográfico, com a maior parte da sua população situando-se na faixa etária entre 20 e 60 anos, apta ao trabalho. A redução vertiginosa da natalidade impedirá que o Brasil desfrute por muito mais tempo dessa situação, tornando urgente a implementação de políticas incentivando a industrialização e promovendo a proteção ao trabalho.
O Brasil tem todos os recursos para tanto, podendo, assim, dar uma contribuição original e especialíssima à modernidade trabalhista, no qual a inserção social se faz pelo trabalho, e que ainda está em curso em boa parte do mundo. Como foi o caso entre 1930 e 1980, quando o Brasil foi o país de maior crescimento industrial do mundo, ao mesmo tempo em que disponibilizou aos trabalhadores uma gama de proteção ao trabalho invejável até mesmo a muitos países ditos desenvolvidos.
Não nos faltam recursos humanos, naturais e monetários, mas tão-somente vontade política, que, direcionada hoje para a espoliação financista, deverá ser reorientada para a ordem e o progresso da Nação.
Felipe Maruf Quintas é doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.