Conversamos com Roberto Carline, estrategista-chefe do Banco Sofisa, sobre o comportamento das contas públicas em 2024 e suas perspectivas para 2025.
Qual a sua avaliação sobre as contas públicas em 2024?
Nós vemos a evolução das contas públicas e elas em si com preocupação, sendo que essa preocupação está mais atrelada a sua composição e administração do que a existência de um déficit. Eu coloco dessa forma, pois o Estado brasileiro ainda precisa ser grande, já que nós somos um país em desenvolvimento onde a sua influência acaba sendo um divisor de águas para alguns setores da economia.
Esse Estado grande deveria ter uma alocação de recursos mais eficiente, mas hoje, quando olhamos o orçamento, nós vemos que a imensa maioria dos gastos e das despesas são recorrentes, ou seja, não se está usando o capital do orçamento para o incentivo de investimentos produtivos. O Estado está atuando, essencialmente, na gestão da Previdência, tanto do INSS quanto do setor público, e nas despesas de funcionalismo, ou seja, ele está atuando na remediação, e não na construção de um futuro.
O Brasil deveria ter uma alocação maior de recursos para educação e saúde preventiva, pois quando se tem esses dois componentes melhor estruturados, a economia será movida, ao longo do tempo, para um patamar mais elevado em termos de geração de receita e empreendedorismo. A Embrapa e o Porto Digital do Recife são dois exemplos disso que estou falando.
O gasto existente é muito ineficiente, sendo que essa baixa eficiência acaba alimentando mais ineficiência no futuro, o que vai gerar um crescimento do PIB menos persistente ao longo do tempo. Com isso, a base de receita vai diminuindo, enquanto a base de despesa vai crescendo acima da inflação. Em algum momento, essa conta vai ficar tão distante para fechar que vai haver um problema de financiamento.
O que temos em 2024 é um gasto público direcionado para pilares que são importantes, mas que não geram eficiência para a economia, e uma arrecadação que não é persistente a longo prazo. Por mais que hoje estejamos bem, a trajetória não é positiva.
As ações do governo para aumentar a receita estão surtindo efeito?
No curto prazo, sim, mas as ações do governo não são sustentáveis, já que elas estão, efetivamente, com uma visão de suprir necessidades de curto prazo. Isso porque o aumento de impostos, ainda que pontual de alguns setores produtivos, traz uma ineficiência, já que tira um capital que poderia ser investido a longo prazo.
O setor privado tem que pagar impostos, não se discute isso, mas a carga tributária tem que estar em um ponto de tradeoff onde o imposto seja pago, mas haja excesso de recursos para serem reinvestidos na atividade produtiva. O problema é que esse ponto foi ultrapassado. Desta forma, resolve-se um problema para este ano, mas não se resolve a situação para 2026. Isso porque hoje se arrecada o suficiente para pagar as contas, só que para pagá-las daqui a dois anos será necessário aumentar a base de tributação, o que pode ser feito de duas formas: ou os pagadores de impostos aumentam a sua geração de resultado ou se aumenta as alíquotas. O que se está fazendo hoje não é convidativo e não cria um movimento para o aumento de geração de resultados, pois o que está sendo feito é mexer com alíquotas. Vai chegar uma hora em que essa conta não vai fechar.
Uma inflação um pouco mais forte é benéfica para a arrecadação, pois quando se aumenta os preços, se aumenta o resultado da economia, o que aumenta a base de tributação e permite uma arrecadação maior, mas isso tira a capacidade de investimento e também de consumo. Como disse, essa conta só se resolve no curto prazo.
As despesas públicas estão tendo um comportamento coerente sob a gestão do atual governo?
Por um bom tempo, nós tivemos essa coerência, mas ela foi sendo perdida. No dia 30 de julho, nós tivemos um grande evento que foi a revisão do plano de contas e do orçamento através do qual vieram os cortes. Esse freio de arrumação foi feito para devolver a coerência que vinha sendo perdida.
O problema é que quando recebemos o relatório do quarto bimestre, nós tomamos um grande choque, pois a coerência que houve por um prazo de tempo, foi deixada de lado. Por exemplo, quando há uma liberação de R$ 3,8 bilhões contra um contigenciamento de R$ 2,1 bilhões, isso mostra que o governo se permitiu gastar mais.
Como acontece em países desenvolvidos, um gestor público tem que injetar dinheiro na economia, no âmbito assistencial, quando acontece um desastre ambiental, como queimadas, secas ou o ocorrido no Rio Grande do Sul, mas justamente no momento em que isso acontece, quando as contas estão fragilizadas, nós vemos um gasto adicional na Previdência, que é algo que não pode ser controlado ou que possa ser cortado. A partir do momento em que se vê um gasto maior do que era projetado, se o governo quisesse manter a coerência, ele não liberaria R$ 3,8 bilhões em recursos. Esse contingenciamento não poderia ter sido revertido.
Ao fim e ao cabo, o governo vinha mais ou menos coerente até um par de semanas atrás, mas essa coerência foi quebrada com essa atitude. Esse é um ponto de alerta muito grande. Mais uma vez: a maior atenção sobre o orçamento estava muito mais voltada para essa coerência do que para o número, já que o déficit zero não era crível.
Na sua avaliação, o Arcabouço Fiscal está sendo efetivo? Faço essa pergunta, pois R$ 40,4 bilhões ficaram de fora da meta do resultado primário?
Desde que o Arcabouço Fiscal foi lançado, eu o interpretei como uma grande carta de intenção, pois ele não é uma estrutura sustentável a longo prazo. A partir do momento em que você faz uma regra através da qual se permite gastar mais, caso haja determinado nível de crescimento, você tem, por definição, um conflito de interesse. Isso porque o governo se permite gastar mais, mas não se compromete com os tipos de gastos e com os vetores de crescimento. Como isso será medido e quantificado por uma ótica de Arcabouço, colocou-se uma regra genérica que dá uma grande margem de manobra para a própria necessidade financeira do governo.
Como disse, o Arcabouço, como carta de intenção, é fantástico, mas o seu enforcement é muito baixo, já que esse é um alvo móvel que pode ser movido para um patamar do interesse do governo. Eu não estou falando isso numa perspectiva maquiavélica, no sentido de manobrar para defender um grupo ou uma ideia, mas por uma ótica de gestão efetiva. O problema dessa meta móvel é que ela gera um incentivo de curto prazo para ser cumprida, mas esse incentivo não garante uma consistência na trajetória de longo prazo.
Naturalmente, esses números são altamente discutíveis e já existem algumas projeções que apontam que esse mecanismo de meta pode nos levar a uma relação Dívida/PIB próxima a 90%, o que, para um país como o nosso, é muito alta por uma perspectiva de percepção de riqueza. O Arcabouço não trouxe um mecanismo de freios e contrapesos necessário para uma gestão macroeconômica prudencial.
Em quanto tempo a relação Dívida/PIB atingiria 90%?
Algo como 3 anos. A partir do momento em que a percepção de risco nessa trajetória aumenta, o mercado passa a cobrar uma taxa de juros mais alta para emprestar recursos ao governo. Quando isso acontece, você entra em uma espiral bastante corrosiva, que acaba acelerando o distanciamento do equilíbrio entre receitas e despesas, não com o pagamento do funcionalismo público, de aposentadorias ou de investimentos, mas com o pagamento de dívida.
Toda a discussão relacionada a bloqueio de despesas e contingenciamento recae sobre o Poder Executivo. Os Poderes Legislativo e Judiciário não deveriam participar dessa discussão?
Com certeza, pois como todos eles são representantes da sociedade brasileira, eles não podem se isentar da responsabilidade que têm perante a sociedade. Não adianta o Executivo mandar uma peça orçamentária, ela ser aprovada, para depois se encarar com naturalidade, colocando um exemplo, as emendas Pix para atendimento de necessidades pontuais de região A ou B. Se essas necessidades existem, elas têm que ser apresentadas no momento de montagem do orçamento.
Pegando um exemplo mais genérico, o governo não deveria tirar do cálculo do Arcabouço Fiscal o contingenciamento para desastres naturais. Se R$ 80 bilhões foram alocados e gastos, mas isso não estava previsto, há uma explicação. O orçamento estourou, mas se isso foi justo, vida que segue.
Qual a sua expectativa para o comportamento das contas públicas em 2025?
Nós não acreditamos em um déficit zero para o próximo ano. Quando se olha o próprio boletim Focus, ele aponta para um déficit em 2025. Quando se olha para a última ata do Copom, ela também aponta para um risco de orçamento no próximo ano. Existe um sentimento de que há uma trajetória complexa do orçamento e das contas públicas para o ano que vem. Se você me perguntar se eu espero um descontrole, a minha resposta é não, mas eu também não espero coerência.
Historicamente, o Brasil tem uma atitude macroeconômica muito curiosa. O país estica a corda até o momento em que ela esgarça e pode romper. Na hora em que se chega a esse ponto, para-se tudo e se arruma a casa.
Para 2025, eu estou trabalhando com um cenário em que nós teremos uma corrosão nas contas públicas, uma piora no nível de gastos públicos e uma ineficiência maior na alocação de recursos, até que a sinalização dos agentes econômicos vai ser tão severa que vai nos obrigar, enquanto nação, a fazer algum ajuste. Essa não é uma situação de muito longo prazo, pois quando olhamos a evolução da Dívida/PIB, nós vemos que essa relação vem se corroendo de forma progressiva ao longo dos anos. Isso não é segredo para ninguém.
É muito provável que no ano que vem nós tenhamos uma pausa para ressignificar as contas públicas e o orçamento. Isso porque o custo de financiamento do Estado vai ficar muito alto. Por exemplo, quando se vê uma taxa de juros sendo negociada a 12%, 12,3% para um prefixado, e uma taxa de juros atrelada à inflação negociada a 6,3%, 6,5%, você tem um recado muito forte de que essa trajetória não é saudável. Isso porque esses patamares de prêmio de risco somente são vistos em eventos de crise severa no Brasil.
O melhor seria que o governo fosse proativo e fizesse uma reorganização, o quanto antes, do orçamento e da forma como é feita a gestão do gasto público. Esse problema será superado, mas, na minha leitura, nós temos um momento severo pela frente.
Considerando a conversa que tivemos, você gostaria de acrescentar alguma ponto a sua entrevista?
Atualmente, o risco inflacionário não é pelos preços de commodities, do petróleo ou pela economia Internacional. Ele está relacionado às expectativas de como as contas públicas vão ser geridas. É por isso que a União precisa tomar uma ação assertiva para fortalecer a sua credibilidade na gestão do orçamento, pois, como dizia a minha falecida avó materna, a cisma é pior que a doença.
O governo precisa ser mais austero na gestão das contas públicas e precisa procurar mais eficiência no gasto do Estado. Ao conseguir isso, a sociedade ficará mais tranquila para poupar e consumir amanhã; Se ela sente insegurança, ela vai consumir o máximo hoje, o que gera inflação.
Se a condução do orçamento for ajustada, isso vai devolver um comportamento muito positivo para a inflação. Esse é um ponto que tem sido pouco debatido, apesar de ser relevante: a união das contas públicas com a inflação.