No dia 1º de novembro de 2024, em pregão realizado na Bolsa de Valores de São Paulo (B3), o consórcio formado por um grupo português, Consórcio Aposta Vencedora, sagrou-se vencedor após arrematar a outorga para concessão de loterias, pelo prazo de 15 (quinze) anos, no Estado de São Paulo.
Embora as modalidades de jogos e apostas previstas na licitação não compreendam as populares apostas de quota fixa, as chamadas “Bets”, o Contrato de Concessão trouxe obrigações para a concessionária que incorporam preceitos da Lei 14.790/23 (“Lei das Bets”), além de inovar ao abordar preocupações que esse mercado trouxe à economia e à sociedade.
Atualmente, as Bets funcionam com autorizações temporárias concedidas pela Secretaria de Prêmios e Apostas, vinculada ao Ministério da Fazenda. Essas autorizações, para se tornarem definitivas, serão objeto de análise e cumprimento dos requisitos fixados pela legislação e normativos vigentes.
Apesar de o Contrato de Concessão vincular apenas a concessionária vencedora e o Governo, sem produzir efeitos para terceiros, o mercado que explora Bets, especialmente as casas de apostas, pode vislumbrar algumas tendências do que o Governo e órgãos reguladores estão pensando em termos de normatização, fiscalização e controle.
Destacam-se cinco pontos do Contrato de Concessão que merecem atenção e podem inspirar normativos e alterações legislativas:
O primeiro ponto é a obrigatoriedade de mecanismos de integridade, ou “compliance”. O Contrato de Concessão, ao contrário da Lei das Bets, prevê a obrigatoriedade de a concessionária implantar um programa de compliance, por meio de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades, além da aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes com o objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra o Governo, alinhados à Lei Federal nº 12.846/2013 e seu Decreto Regulamentador 11.129/21 (“Lei Anticorrupção”).
Nota-se que o Governo ressaltou a importância do compliance dentro da operadora de jogos e apostas, e não apenas para a integridade destinada às apostas, como se limita a Lei das Bets e a Portaria SPA/MF 827/2024.
O segundo ponto de destaque é a necessidade de auditoria independente e registros contábeis. Diferentemente da Lei das Bets, que não dispõe sobre a completude e precisão dos registros contábeis, o Contrato de Concessão prevê a obrigação de a concessionária manter a contabilidade e demonstrações financeiras auditadas por auditor independente, conforme as práticas contábeis adotadas no Brasil, as normas expedidas pelo Conselho Federal de Contabilidade – CFC e as Interpretações, Orientações e Pronunciamentos do Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC.
O terceiro ponto é o reporte obrigatório de apostadores ganhadores. Em relação às preocupações com a prevenção à lavagem de dinheiro, financiamento ao terrorismo e ocultação de bens, assim como a Lei das Bets, o Contrato de Concessão também prevê a obrigatoriedade da implantação de mecanismos de controle ao engajamento nessas condutas.
Contudo, ao contrário da Lei das Bets e normativos correlatos, que tratam do reporte de operações consideradas suspeitas e atípicas, o Contrato de Concessão estabelece a obrigação de reporte ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF da identificação dos apostadores ganhadores, promovendo maior efetividade e transparência aos controles de prevenção desses ilícitos.
O quarto item é a prevenção do jogo excessivo e do endividamento. Com diversas notícias relacionadas ao impacto das Bets na economia e ao superendividamento de apostadores, especialmente de pessoas vulneráveis, o Contrato de Concessão foi mais assertivo do que a Lei das Bets quando o assunto é vício em jogos.
Segundo o Contrato de Concessão, a concessionária deverá criar uma área específica dedicada à prevenção do jogo excessivo e situações de endividamento. A Lei das Bets não aborda questões de superendividamento.
Por fim, o quinto ponto se refere à tributação e obrigações fiscais previstas. O Contrato de Concessão estabelece como obrigação da concessionária o recolhimento dos tributos incidentes sobre suas atividades, incluindo a retenção e recolhimento do Imposto de Renda na Fonte incidente sobre a premiação paga, bem como o cumprimento da legislação tributária, buscando meios mais eficientes, conforme os mecanismos disponíveis na legislação.
Tal disposição também é replicada na Lei das Bets e nas normas fiscais da Receita Federal, especificamente na IN/RFB nº 1.500/2014, em seu artigo 19, parágrafo único, inciso IV, que foi introduzido pela IN/RFB nº 2.191/2024, que trata da tributação de jogos e apostas.
Portanto, é uma tendência que, em termos de tributação de prêmios pagos aos apostadores, sejam mantidas as regras vigentes.
Não podemos esquecer que o Contrato de Concessão foi celebrado com o Governo e, portanto, é natural que tenha mais rigor do que relações meramente privadas, pautadas pela liberdade de contratar e livre iniciativa.
Contudo, é notável que assuntos relevantes, especialmente os discutidos no escopo do avanço das Bets, foram objeto de atenção por parte do Governo na concessão da exploração de modalidades lotéricas no Estado de São Paulo, representando uma ótima oportunidade para que as Bets antecipem essas preocupações e os temas que já estão no radar das autoridades.
Carlos Henrique da Silva, Heitor Kulig Branco e Livia Fabor de Queiroz são advogados do Gaia Silva Gaede Advogados, em São Paulo.