Covid-19: a iminente necessidade de renegociar as regras do jogo

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As contradições do capitalismo já vêm sendo apresentadas desde o início desse novo século, principalmente com a crise norte-americana de 2008. As adversidades passam por setores: imobiliário, econômico, político, ecológico e climático.

Parecia que esses marcadores estruturantes já eram suficientes para evidenciar as desigualdades sociais e alucinações de nossos governantes que não estavam preocupados com outra coisa, senão com a financeirização e a manutenção do status quo, adotando de forma descarada políticas reacionárias cuja retórica desemboca na ascensão do conservadorismo e do nacionalismo, tratando as questões sociais como histeria.

 

A mão invisível e a globalização foram

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capazes apenas de alargar o hiato social

 

Ocorre que a atual conjuntura dada pela Covid-19 (coronavírus) tencionou a humanidade a refletir sobre os seus próprios hábitos, visto que o vírus não se esgota no campo da saúde, tendo implicações diretas no modelo social experimentado a partir da era capitalista.

Para nós, brasileiros, o que inicialmente aparentava ser uma distopia distante e pontual se alastrou de forma avassaladora por todos os continentes em questão de semanas. O escalonamento e a intensidade do vírus é algo que tem sido apontado pelos epidemiologistas, os quais têm alertado nos cuidados básicos com higiene pessoal e isolamento social.

Embora a transmissão viral tenha nos grupos de risco idosos e doentes crônicos, a pandemia afeta de forma imediata outros grupos sociais, o que fica evidente quanto à orientação de redução de deslocamento inclusive para fins de trabalho.

Além disso, não se pode desconsiderar que a quarentena, dada por recomendação da Organização Mundial da Saúde e pelo Ministério da Saúde, exige o recolhimento social e mudanças de comportamento da rotina.

Assim, a distribuição de renda, os meios de produção, a força de trabalho e propriedade privada são temas que estão no centro da dialética geopolítica e socioeconômica da Covid-19, pois se o pacto social estabeleceu o trabalho como fonte primária de sustento dos indivíduos, para algumas pessoas a paralisação pode ser fatal, pois se o indivíduo está em casa, não está produzindo.

Se de um lado o neoliberalismo econômico ganha o discurso de Paulo Guedes com a redução de políticas públicas em setores importantes como na educação, ciência e saúde, entregando o país para a privatização, de outro lado, o enxugamento do Estado cria um desmonte palpável e visível na vida das famílias brasileiras menos favorecidas.

A distribuição de riquezas, tema que gera calafrios em alguns economistas obcecados em aparelhar banqueiros e grandes acionistas, requer olhar delicado em um momento como esse em que a sociedade é levada a pensar como o trabalho, por si só, não é capaz de prover necessidades básicas ao indivíduo, quanto mais enriquecê-lo, ou seja, a maioria da população brasileira pode trabalhar uma vida toda que não terá qualquer chance de chegar no patamar financeiro mínimo para ter uma vida digna.

No plano prático, o Brasil em 2019 totalizou R$ 7,3 trilhões no PIB com renda per capita de R$ 34.762. Em 2018, dos 210 milhões brasileiros, apenas 1% recebe em média R$ 27.744 por mês, em chocante contraste com os menos favorecidos, que receberam naquele ano o ínfimo valor de R$ 820, ou seja, menos que o salário mínimo da época.

A aberração é tamanha que, em vez de enfrentar a discussão em torno da distribuição de riqueza e reorganização do Estado, o citado ministro da Economia anunciou que iria “disponibilizar” para trabalhadores informais o auxílio mensal equivalente ao bolsa família, o qual tem um teto de R$ 205.

Na saúde, setor que está em evidência em razão da pandemia, dados mundiais demonstram que o governo brasileiro investe cerca de 3,9% do PIB, enquanto que o gasto das famílias em serviço e produtos de saúde chegou a 9,2% em 2017, ou seja, se o brasileiro já contribui para o governo por meio de recolhimento de tributos para ter acesso a saúde, significa que ele está pagando a conta duas vezes: uma para o governo e outra para o setor privado na compra de medicamentos, na realização de exames e na adesão de convênio ou plano de saúde.

No setor da ciência, pesquisa e desenvolvimento (P&D) o investimento não ultrapassa 2% do PIB, enquanto que as empresas privadas investem somente 0,55%.

Nesse momento é importante observar que, ao atravessarmos essa crise, muito deverá ser feito para eliminar as contradições do capitalismo. Para fins ilustrativos, deixamos a macroeconomia de lado que, por si só, já demonstra uma infinidade de contradições como, por exemplo, o enriquecimento de alguns mercados em face de outras, como é o caso da queda do mercado financeiro ou do setor aéreo em contraposição ao setor da saúde privada e da indústria farmacêutica, que terão aumento em sua receita.

Por agora, é importante olhar o impacto econômico das classes desfavorecidas que estão sendo massacradas nessa engrenagem. Assim, o que parece um efeito dominó, na verdade tem impacto primário nas periferias. Afinal, seria possível pedir que uma cuidadora de idosos que mora no Capão Redondo e trabalha no Higienópolis permaneça em casa e faça home office?

E quanto ao abastecimento de produtos básicos, seria possível pedir para que seu Francisco, morador do Taboão da Serra, atravesse a cidade com o seu salário mínimo e encha a “dispensa”?

Ou melhor, com o objetivo de seguir as recomendações, a Nathalia não vai sair de casa porque o chefe a liberou para ficar em quarentena, mas a verdade é que ela está com fome e mora sozinha em um apartamento em Pinheiros. Em razão do recolhimento, ela resolveu pedir comida pelo aplicativo.

Marcos, o entregador do aplicativo que faz uma jornada diária de 12 horas, pois trabalha “por conta”, não vê possibilidades de ficar de quarentena, uma vez que ganha por entrega, por isso não poderia dispensar a comida tailandesa requisitada por Nathalia.

 

Nesta crise, muito deverá ser feito para

eliminar as contradições do capitalismo

 

O cenário de recessão econômica que, como alguns economistas preveem, começará nos próximos meses, na verdade em poucos dias já teve efeitos em uma massa de famílias que terão impacto certo nas cestas básicas e nos aluguéis, já que a seguridade social não foi feita para atender a demandas dessa magnitude.

É nesse sentido que a economista italiana Mariana Mazzucato analisa que “agora temos a oportunidade de usar essa crise como uma maneira de entender como fazer o capitalismo de maneira diferente. Isso requer repensar para que os governos servem: em vez de simplesmente consertar as falhas do mercado quando surgirem, eles devem avançar para moldar e criar ativamente mercados que proporcionem um crescimento sustentável e inclusivo. Eles também devem garantir que as parcerias com empresas que envolvam fundos governamentais sejam motivadas por interesse público, e não por lucro.” (tradução livre).

Menos intervenção estatal não parece uma solução inteligente adotada pelo Estado, uma vez que o setor privado pouco investe em pesquisa ou atividades que não gerem lucro. Por isso, a economista orienta que o sistema unificado de saúde e o desenvolvimento constante de ciência e pesquisa são fundamentais para atravessar períodos como esse, já que a falta de investimento público na saúde e o demérito da ciência setoriza a desigualdade social.

Mais do que “solidariedade”, o tempo exige responsabilidade social. Temas que parecem não estar correlacionados, em tempos de crise mundial como a que estamos atravessando agora com a Covid-19 joga luz a problemática do não fortalecimento da saúde pública e da ciência. Afinal para quem faltarão máscaras, leitos e medicamento primeiro? E na hipótese de a vacina ser desenvolvida em um país de Primeiro Mundo, será a indústria farmacêutica responsável na divulgação na fórmula para países subdesenvolvidos ou patenteará para lucrar em cima da desgraça mundial?

O capitalismo se autodeclara resiliente, mas está visivelmente ruindo, pois mais uma vez demonstra como o Estado é direcionado para atender aos interesses de uma classe específica. Além disso, estamos testemunhando que a mão invisível e a globalização foram capazes apenas de alargar o hiato social. Esse é um momento de renegociação das regras do jogo.

A desaceleração que colabora com o enfrentamento da pandemia exige que sejamos mais responsáveis não só com questões sanitárias, como também estejamos maduros para reivindicar a revisão do que é prioridade, como é o caso da emergente reconfiguração social envolvendo as atividades humanas, bem como a sua subsistência, além de é claro a redução brusca da produção exagerada e do consumo.

Monique Rodrigues do Prado

Advogada especialista na área médica, é integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB – Subseção Osasco e participa do Comitê de Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil e da Educafro.

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