É quase senso comum considerar que, sem o apoio generalizado e difuso da sociedade, nenhum regime político pode manter-se. Isso se refere tanto ao apoio consciente ao regime quanto aos pequenos hábitos e comportamentos do dia a dia, incluindo aí as formas como agimos e as maneiras que rejeitamos para agir. Assim, todo regime apresenta um aspecto cultural; dito de outra maneira, toda cultura tem um aspecto político que se corporifica no regime político, que cria e sustenta as instituições.
Vale notar que as instituições importam, e muito, mas seu funcionamento adequado depende do apoio social que o conjunto da sociedade fornece, da legitimidade que as instituições têm para agir da maneira adequada e, não menos importante, das convicções íntimas que os agentes públicos e os cidadãos têm para fazer valer as funções das instituições. Em outras palavras, sem a cultura política sustentando as instituições, estas não passam de cascas vazias e letras mortas.
A relevância dessas afirmações, aparentemente tão simples, pôde ser comprovada ao longo da última década, a partir de diferentes exemplos. O primeiro exemplo é o mais fácil de citar: trata-se da série de crises de legitimidade com que as instituições políticas representativas têm-se defrontado há bastante tempo.
Não se trata apenas de um sentimento difuso e disseminado de que “os políticos não nos representam”. Isso por si só já seria bastante grave, mas, em si, gera mais apatia e cinismo do que qualquer outra coisa: ora, a crise de legitimidade que temos visto desde pelo menos 2013 tem resultado em um ativo comportamento autoritário.
Em vez de as instituições republicanas (nas equívocas formas “democrático-liberais”) perderem apoio por si mesmas, o que se tem visto é que essa perda tem sido trocada por um apoio a práticas e propostas institucionais autoritárias, violentas, iliberais. O apelo democrático é o mesmo: é sempre a soberania popular que justifica essas propostas; como, supostamente, a vontade popular nunca erra (afinal, vox populi, vox dei), muitos consideram que o misticismo saudosista do regime militar seria aceitável.
Essas concepções antirrepublicanas têm sido defendidas por muitos grupos sociais e políticos que tentam implementá-las por meio de duas estratégias complementares: (1) desgastando as instituições vigentes, corroendo sua autoridade e/ou mantendo-as inertes (ou melhor, omissas); (2) tentando a mudança total de uma única vez. A primeira estratégia come pelas beiradas, a segunda consiste em um ataque direto ao conjunto das instituições.
Ora, a partir de um sentimento social difuso e disseminado, não necessariamente espontâneo, entre 2019 e 2022, o que se viu foi o seguinte: o poder Executivo buscou e apoiou o golpismo militarista; o poder Legislativo foi inicialmente um anteparo a isso (entre 2019 e 2020, com Rodrigo Maia à frente da Câmara dos Deputados) e, depois, foi um esteio dessas ambições (em 2021 e 2022, com Arthur Lira como presidente da Câmara); e a Procuradoria-Geral da República (PGR) exibiu uma omissão cúmplice. O grande anteparo dessa longa ofensiva foi o Supremo Tribunal Federal (STF), na figura de Alexandre de Moraes, secundado pelos outros dez ministros.
Vimos, então, a cultura política em ação, seja no seu aspecto difuso, social, seja no seu aspecto concreto, institucional e individual: um intenso ativismo social apoiou e foi apoiado por um ativismo institucional contra o conjunto das instituições, parte das quais apresentou uma omissão conivente contra esse mesmo conjunto; uma instituição central, em particular, opôs-se a isso e evitou o triunfo da maré antirrepublicana.
Esse resultado é notável e torna-se ainda mais impressionante quando se o compara com o outro exemplo que queremos comentar. Os atores envolvidos são os mesmos (sociedade civil, os três poderes, PGR); a fundamentação filosófico-moral é a mesma (valores sociais compartilhados, caráter “democrático” das instituições), a tramitação é a mesma (propostas dos poderes Executivo e/ou Legislativo avaliadas pelo Judiciário); os casos que nos interessam agora também se referem a aspectos centrais e fundamentais da República. Mas o resultado é inverso ao anterior. As questões são relativas à laicidade do Estado.
Desde 1890, o Estado brasileiro é laico. Isso deveria significar que o Estado não tem doutrina oficial, nem que as doutrinas/igrejas se valem do Estado para imporem-se sobre os cidadãos. O Estado, mais ou menos, não tem doutrina; mas as doutrinas/igrejas usam, sim, o Estado para imporem-se e querem, cada vez mais, que o Estado apoie ativamente esse uso.
Nesse quadro, as instituições deveriam apoiar o que é uma disposição política e constitucional desde o início da República: mas o poder Legislativo tenta criar brechas o tempo todo; o Executivo é omisso ou partícipe ativo dessas iniciativas; o Ministério Público é igualmente omisso. Restaria o Judiciário, mas decisões tomadas nos últimos anos indicam que o STF também apoia o desprezo à laicidade. E, pior, esse desprezo manifesta-se pelo mesmo ministro – infelizmente, Alexandre de Moraes.
Em 2017, Alexandre de Moraes se opôs a Roberto Barroso, foi favorável a que as escolas públicas tivessem ensino religioso confessional e foi o autor do voto vencedor nessa questão. Para Moraes, é lícito ao Estado pagar sacerdotes para que eles imponham sobre os estudantes suas doutrinas, em caráter oficial (com a fantasiosa possibilidade de opção). Agora, em 2024, o mesmo Moraes julgou que os crucifixos em órgãos públicos não ofendem a laicidade do Estado, ou seja, símbolos de uma doutrina específica podem ser exibidos em caráter oficial (e obrigatório) para todos os cidadãos, mesmo acima dos símbolos da República!
O argumento empregado nos dois casos pelo ministro Moraes é o mesmo utilizado pelo ex-presidente que tentou dar um golpe militar durante quatro anos: trata-se de que, “se o Estado é laico, a população é cristã”. A laicidade tem que se dobrar a uma crença compartilhada e pode ser negada. Não se pode argumentar ignorância ou má-fé do ministro Moraes, nem mesmo tibieza ou medo: ele não é o tipo de pessoa que se dobra a pressões externas por medo. São convicções íntimas, compartilhadas pela maioria do STF em 2017 e novamente em 2024.
O problema, então, é de cultura política – e de filosofia política. Trata-se de considerar que as opiniões são secundárias e que a força, a violência do Estado, é só o que importa. Um Estado autoritário é um grave problema e deve ser evitado, sem dúvida: essa é a opinião do STF e de metade da população brasileira. Mas um Estado que impõe doutrinas e símbolos – na verdade, de maneira ainda mais dura e agressiva que em um Estado autoritário – isso não é problema, pois “a população é cristã”, e é lícito que o Estado pague servidores públicos para a pregação religiosa.
São opções filosóficas e morais incoerentes, na verdade incompatíveis. Essas opções revelam e conduzem a uma cultura política que é mais que incompatível: ela é suicida.
Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.