Notícias como a do jovem estagiário que transformou R$ 30 mil em R$ 700 mil durante a pandemia atrai para a prática da compra e venda diária de ações. Investidores incautos acumulam prejuízos e geram lucros a quem surfa nessa onda vendendo cursos, livros e ilusões Desde a semana passada, viraliza nas redes sociais a trajetória de um jovem carioca de 24 anos e origem humilde que, atuando como day trader durante a pandemia, conseguiu transformar R$ 30 mil em R$ 700 mil.
Histórias de superação como essa costumam ser inspiradoras. Contudo, a forma como ela é compartilhada na internet acaba confundindo as pessoas e reforçando uma compreensão equivocada de que um investimento de altíssimo risco pode ser uma fonte de renda. Pesquisas mostram que quase a totalidade dos seguem por esse caminho têm prejuízo. Os pesquisadores Fernando Chague e Bruno Giovannetti, da Fundação Getúlio Vargas, chegaram a conclusões espantosas em seu trabalho.
Foram acompanhados todos os indivíduos que começaram a fazer day trade em ações no mercado brasileiro entre 2013 e 2016 (98.378 indivíduos), chegando-se nas seguintes revelações: 99,43% dos indivíduos não persistiram na atividade (apresentaram menos de 300 pregões com day-trades); considerando-se os day-traders que persistiram (operaram por mais de 300 pregões), a performance média foi negativa; apenas 127 indivíduos foram capazes de apresentar lucro bruto diário médio acima de R$ 100 em mais de 300 pregões. Nas palavras dos próprios pesquisadores: “Entre os 1.551 que persistiram, apenas 8 conseguiram apresentar lucro bruto diário médio maior do que a remuneração de entrada de um caixa de banco (160 reais por dia).”
No entanto, ao se observar que o número de novos investidores, inclusive muito jovens, nota-se que os resultados parecem não ter desanimado quem acredita na possibilidade do dinheiro fácil.
“A essência de se comprar uma ação é você se tornar sócio de uma grande empresa. Então, qual o sentido de você ficar comprando e vendendo a sua sociedade diariamente?”. Quem traz essa reflexão é o Educador Financeiro do canal “Dinheiro Com Você”, William Ribeiro, que também faz o alerta para os riscos dessa prática.
“A grande maioria das pessoas que estão se interessando pelo investimento em ações ainda acredita que tudo se resume a ficar acompanhando gráficos e apostando nas subidas e descidas dos preços. Day trading é uma atividade extremamente extenuante, que já levou vários investidores e famílias à ruína. Às vezes, o pior que pode acontecer é você começar ganhando dinheiro e acreditar que descobriu as regras do jogo. Os raríssimos day traders que ganham dinheiro, realizam a atividade como seu ofício, não é um hobby para se realizar no litoral ou no semáforo (aliás, quem, em sã consciência, deixaria de tomar caipirinha na praia para operar?).”
Dinheiro Fácil
Os investidores que têm mais chances em conseguir lucro no day trade são aqueles que menos precisam disso para sobreviver. Pessoas que já construíram patrimônio e levam esse capital para o mercado financeiro para investir, para rentabilizá-lo. “Quem tira dinheiro do seu próprio orçamento familiar para investir já começa perdendo, porque vai ser impossível não deixar o lado psicológico interferir nas operações”, explica o Educador Financeiro.
“Algumas pessoas afirmam que, assim como em qualquer outra atividade, poucos são os que se dedicam e têm sucesso. No caso do day trading isso é uma falácia, porque as pesquisas mostram que os operadores não ficaram melhores com o passar do tempo. Além disso, para efeito de comparação, as chances de ser aceito em Harvard são de 4,7%, muito superiores aos 0,13% dos daytraders que têm como resultado mais de R$ 100 brutos por dia.”, destaca.
William Ribeiro William, que é engenheiro de Computação pelo Instituto Nacional de Telecomunicações (Inatel), com MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas e experiência de 20 anos na condução dos negócios de suas empresas, explica ao Monitor Mercantil a percepção da enorme carência da maioria dos brasileiros sobre Finanças Pessoais, não só nos investimentos, mas sobre como ganhar e economizar dinheiro também.
Quem realmente ganha com o ‘day trade’?
O grande foco das pesquisas sobre day trade é sobre “consistência”. Foi demonstrado que quanto maior é o número de pregões operados, menos provável é a sua chance de sucesso.
Desta forma, sempre teremos alguns vencedores pontuais, como certamente é o caso do jovem estagiário que se tornou “milionário” repentinamente. Ainda assim, por mero efeito da aleatoriedade, é bem possível que alguns poucos traders tenham sucesso repetidas vezes. “Se fizéssemos um campeonato de cara ou coroa, o campeão brasileiro certamente teria acertado um número bizarro de vezes, talvez dezenas delas. Nem por isso teria algum mérito por suas escolhas, mas certamente seria capa de revista e poderia lançar um curso ensinando como ser um vencedor nesta modalidade.
Definitivamente, day trade é um negócio lucrativo. Mas, de acordo com os estudos, quem faz dinheiro com ele são somente as corretoras (que ganham taxas), a Bolsa de Valores e os vendedores de curso. Tome cuidado com os gurus, com as dicas das outras pessoas. Será que se alguém tivesse o mapa da mina de ouro iria compartilhar com você e precisaria do seu dinheiro? Acrescento que, se tais dicas fossem divulgadas, brevemente seriam inócuas, uma vez que ficassem em domínio público e todos copiassem a estratégia.
Se o próprio dono da corretora soubesse desta fórmula, certamente criaria um exército de robôs, operando 24 horas por dia, o que certamente daria muito menos dor de cabeça do que administrar milhares de clientes dentro de uma corretora.
Se você deseja ser um day trader, já sabe que as chances estão contra você e que isso será um “trabalho”, dos mais desgastantes e perigosos, diga-se. Caso contrário, não nunca priorize day trading com relação ao seu próprio ofício, porque é nele que você sabe ganhar dinheiro e pode aperfeiçoar-se de verdade.
O senhor não é a favor da prática de day trade e a que atribui esse boom que aconteceu no Brasil envolvendo essa prática?
– É muito tentador o sonho de se acordar rico. As pessoas acham que isso funciona como um atalho para a riqueza, como bilhete de loteria, quando na verdade ser um daytrader é uma das atividades mais complexas, desgastantes e perigosas que existem. Corretoras e vendedores de curso de daytrading são os únicos que comprovadamente ganham com a atividade e, de uma forma ou de outra, se beneficiam da ânsia dos incautos investidores, na busca por dinheiro rápido.
Podemos afirmar que é uma prática golpista, uma propaganda enganosa?
– Golpe não é, porque não foge da legalidade. Mas certamente podemos discutir a moralidade do negócio. Numa live recente no Dinheiro Com Você, recebi um comentário provocativo e emblemático sobre o assunto. Nosso inscrito comentou que se houvesse um hospital com 90% de mortes dos pacientes, certamente seria execrado e lacrado. No mercado financeiro, de acordo com vários levantamentos (incluindo aqueles dos pesquisadores da FGV, mostrados no Fantástico), o índice de “sobrevivência” dos daytraders é inferior a isso. Partindo de todos os indivíduos que começaram a fazer daytrade em ações no mercado brasileiro entre 2013 e 2016 (98.378 indivíduos), apenas 127 pessoas foram capazes de apresentar lucro bruto diário médio acima de R$ 100 em mais de 300 pregões.
Em sua opinião, deveria haver alguma fiscalização uma vez que trata-se de algo que só favorece os vendedores de cursos e livros e as corretoras?
– Acredito que as corretoras deveriam ser responsáveis pela disseminação de práticas sustentáveis no mercado financeiro. Do ponto de vista mercadológico, sequer faz sentido que o cliente quebre, evidentemente. É fundamental que criemos nos investidores a mentalidade do investimento em ações para construção de patrimônio no longo prazo, expurgando os mitos de que bolsa de valores é apenas um lugar de apostas. Quanto aos cursos de daytrading, acredito que poderiam ser oferecidos somente por profissionais certificados, analistas de valores mobiliários, ainda assim vedando os tradicionais apelos para “vida fácil” como é recorrente nestas propagandas: carros, helicópteros, luxos etc.
Como vê o futuro disso?
– Em vez de mudar o sistema, o investidor deveria se preocupar em como mudar a si mesmo, ser um investidor mais consciente. Isso implica em aumentar o valor da hora de trabalho, manter as contas em dia, tudo para que os aportes mensais possam ficar cada vez maiores. Somada à disciplina e a paciência, o investidor previdente tira a aleatoriedade do curto prazo, para se beneficiar do crescimento das empresas no decorrer do tempo. Mas quem quer esperar, trabalhar e economizar, não é? Por isso que o daytrade é tão sedutor! Pena que não funciona para virtualmente nenhum investidor, conforme revelam os próprios pesquisadores Fernando Chague e Bruno Giovannetti da FGV em outro estudo. “Os autores analisam todos os indivíduos que começaram a fazer day-trade nesse mercado entre 2013 e 2015 (19.646 indivíduos) e que persistiram por mais de 300 pregões (1.551 indivíduos). Entre os 1.551 que persistiram, apenas 8 conseguiram apresentar lucro bruto diário médio maior do que a remuneração de entrada de um caixa de banco (160 reais por dia).”
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