A transformação de uma startup em instituição regulada é mais do que apenas um exercício de conformidade; é uma reestruturação profunda de como operar, organizar-se e relacionar-se com os clientes. É uma jornada desafiadora, mas com todos os componentes para ser bem-sucedida. Não se trata apenas de adesão a normas rígidas, mas também de uma reinvenção dos processos internos, de uma reorganização dos departamentos e de uma mudança cultural que precisa penetrar em todos os cantos da organização. As decisões e deliberações tendem a ficar mais colegiadas, menos individualizadas.
O aspecto mais importante dessa transição é a criação de uma governança adequada. É isso que faz com que a instituição seja resiliente e consiga lidar com os desafios de gerir seus negócios. Para tanto, é essencial a definição clara da autoridade, da responsabilidade e da atribuição de cada um em alinhamento com os interesses corporativos.
Além disso, as instituições reguladas são obrigadas a implementar estruturas mais formais. Isso inclui, dependendo de sua complexidade, a criação de conselhos de administração, a nomeação de diretores independentes e a formação de comitês técnicos de assessoramento, como de risco, de compliance, PLD/FT, de novos produtos etc.
A alta administração (conselho, diretoria e cada diretor designado) é responsável pela criação e manutenção da estrutura de governança. Entre eles, o interesse em seu bom funcionamento deve ser total, até mesmo porque, em caso de bancarrota, seus patrimônios pessoais estarão sujeitos a apreensão.
O modelo dessa estrutura deve prever que as áreas que trazem os negócios são as responsáveis primeiras pela gestão dos riscos associados a eles. Além disso, deve haver segregação de atividades de forma a evitar conflitos de interesse, com a criação de áreas que monitorem e expandam o bom funcionamento desse aparato todo, como compliance, gestão de risco, auditoria etc.
Foco renovado em compliance
O aspecto mais visível de passar a ser regulado é a necessidade de conformidade rigorosa com as regras do Banco Central. As regulamentações são extensas e abrangentes, pontificando sobre temas desde a gestão de riscos e os requerimentos de capital até a transparência, a proteção ao consumidor e as medidas de combate à lavagem de dinheiro.
Isso significa que as instituições devem investir significativamente em suas estruturas de compliance e torná-las robustas, o que pode implicar na criação de departamentos novos ou no reforço dos já existentes para lidar com a complexidade das tarefas.
Os custos associados podem ser relevantes. O investimento em tecnologia para apoiar as atividades de conformidade, como sistemas de gerenciamento de dados e ferramentas de monitoramento de transações, geralmente exige um desembolso significativo. Tais investimentos, entretanto, são cruciais para garantir que as instituições possam monitorar e relatar suas atividades com precisão e em tempo real, conforme exigido pelo Banco Central.
Reestruturação organizacional
A transição para instituição regulada geralmente exige uma reorganização de sua estrutura. As instituições de pagamento que estavam acostumadas a operar com equipes enxutas e ágeis passam a se deparar com a necessidade de expandir e formalizar departamentos. A conformidade e o gerenciamento de riscos, que antes eram considerações secundárias, agora ocupam o centro do palco.
Em alguns casos, essa reorganização envolve a criação de departamentos totalmente novos, que passam a participar de atividades de áreas já constituídas, com o objetivo de garantir que os novos produtos ou serviços estejam em conformidade com as normas do Banco Central, desde a concepção até o lançamento no mercado.
Mudanças culturais
Para muitas instituições financeiras e de pagamento, um dos desafios mais significativos é a mudança cultural que acompanha a regulamentação. Muitas dessas empresas, especialmente as startups de fintech, prosperaram com a inovação, a flexibilidade e a mentalidade empreendedora. Elas agem em passo acelerado, lançam produtos rapidamente e experimentam novas ideias em um ambiente de baixa regulamentação.
Entretanto, sob a regulação do Banco Central, essas instituições precisam adotar uma abordagem mais cuidadosa. A conformidade com as exigências do BCB geralmente significa ciclos de desenvolvimento mais longos, avaliações de risco mais completas e uma abordagem mais cautelosa à inovação. Essa transformação cultural é talvez o maior desafio para seus gestores e suas equipes.
Para lidar com isso, muitas instituições investem em programas de treinamento para funcionários de todos os níveis. Esses programas concentram-se não apenas nos aspectos técnicos da conformidade, mas também na mudança de mentalidade, de um foco em velocidade e inovação para um foco que equilibre agilidade com cautela e responsabilidade.
Tecnologia e gerenciamento de dados
Como a regulação impõe padrões altos de segurança, privacidade e transparência de dados, a tecnologia passa a desempenhar um papel fundamental no suporte à conformidade. O Banco Central exige que as instituições reguladas mantenham registros minuciosos de transações, informações de clientes e dados operacionais, que devem estar prontamente acessíveis para a análise de auditores e supervisores.
Para tanto, as instituições geralmente precisam atualizar sua infraestrutura tecnológica. Isso pode incluir a implementação de sistemas de gerenciamento de dados mais sofisticados, canais de comunicação seguros e medidas avançadas de segurança cibernética.
O gerenciamento de dados não se refere apenas à tecnologia, mas também aos processos organizacionais. As empresas devem desenvolver protocolos claros para a governança de dados, garantindo que as informações sejam coletadas, armazenadas e acessadas de acordo com as diretrizes. Essa ênfase na integridade dos dados pode levar a mudanças na maneira como as empresas interagem com clientes e parceiros.
Proteção ao consumidor
O novo status também traz um foco maior na proteção do consumidor. As instituições agora são obrigadas a aderir a diretrizes rigorosas com relação à transparência de suas operações e à imparcialidade de seus produtos e serviços.
Um dos principais focos é a clareza na comunicação. O Banco Central exige que as instituições forneçam informações claras e precisas sobre tarifas, taxas de juros, riscos dos produtos, termos e condições. Essa mudança exige que as equipes de marketing, jurídico e atendimento ao cliente repensem a forma como apresentam as informações aos clientes, privilegiando a simplicidade e a transparência.
Gestão de riscos
A gestão eficaz de riscos está no centro da estrutura regulatória do Banco Central. As instituições devem adotar uma abordagem proativa para identificar, monitorar e mitigar os riscos que carregam. Para atender a essas expectativas, as instituições financeiras devem desenvolver estruturas dedicadas para desempenhar as atividades mencionadas.
Em palavras simples, o Banco Central quer que as instituições levem em conta a gestão de risco no processo de tomada de decisão e de gerenciamento do negócio. É também o que acionistas, administradores, funcionários, parceiros, investidores e clientes desejam.
Benefícios
Embora a transição para o status de instituição regulada seja um desafio, há também oportunidades. A regulação pode servir como um catalisador para a profissionalização, levando à adoção de práticas consagradas e recomendadas, além de melhorar a eficiência operacional. Isso sem falar na reputação, que é fundamental em mercados que dependem de confiança para operar adequadamente.
Assim, abrem-se as portas para novas oportunidades, como parcerias com instituições financeiras tradicionais, acesso a novos segmentos de clientes e até mesmo o potencial de expansão internacional. As empresas que fizerem a transição regulatória de forma eficaz poderão posicionar-se melhor para competir com os participantes estabelecidos no setor. É o que já vem acontecendo com muitas das 206 instituições reguladas.
À medida que as instituições se ajustam às exigências do Banco Central, descobrem que o foco em segurança, transparência e responsabilidade leva a modelos de negócios mais robustos e a melhores resultados para os clientes. Além disso, a ênfase em uma forte governança, gestão de riscos e proteção ao consumidor resulta em mais resiliência para lidar com mudanças na economia, no mercado e nas expectativas dos clientes.
Eduardo Grell é Diretor de Riscos e Governança da The Sharp Fintech Consultoria