Democracias sociais

Exploração crítica de política, religião e história, analisando democracia, marxismo e o legado de Lênin. Por Umberto R. Andrade.

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Pouco antes das últimas eleições, foi divulgado um áudio em que uma senhora aflita relatava a invasão de sua casa por ativistas com a intenção de escolher futuras acomodações, antecipando-se à coletivização da propriedade privada no Brasil. A senhora refletia o medo da comunização que viria com a vitória do PT. Pessoas iludidas espalharam rapidamente a notícia sem antes usar regras mínimas de comprovação da autenticidade. Era mais uma informação falsa usada pelas máquinas de propaganda para destruir reputações e construir realidades paralelas.

Um tanto tomado pelo pânico, tentei entender quem devia estar preocupado com essa coletivização abusiva. Seriam os grandes proprietários de imóveis, sempre preocupados em acumular lucros, mesmo que impliquem extremo sacrifício para os inquilinos? Seriam os proprietários de um único e modesto imóvel, adquirido por longos planos de financiamento? Ou seriam apenas notícias construídas por grupos de ultradireita, interessados simplesmente em manter antigos privilégios ou perpetuar iniquidade? Nessas discussões é fácil encontrar grupos religiosos agindo sobre a opinião pública na defesa de pautas reacionárias.

Segundo historiadores e antropólogos, a religião surgiu como uma espécie de aglutinante, um meio de promover coesão social e manter vínculos nas sociedades primitivas. Sigmund Freud e Carl Jung queriam localizar as origens do impulso religioso no espaço desfocado da mente e da alma. Jung tinha uma visão positiva da religião, mas Freud a considerava uma espécie de desordem mental que promove a crença em coisas invisíveis e leva a ações compulsivas e condutas obsessivas.

A educação dogmática e infantilizada recebida nas escolas e nas igrejas é certamente motivadora de convicções tão ingênuas. Parece haver um fenômeno semelhante em relação ao fanatismo político e esportivo, onde se podem observar condutas intensas e extremas.

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Os velhos compêndios de História da Civilização Ocidental iniciavam com descrições da cultura egípcia, grega e romana, sem que existisse sequer uma menção de censura por adotarem crenças pagãs e politeístas. Eram aspectos prosaicos de culturas florescentes, responsáveis pelos fundamentos filosóficos das sociedades modernas. Os mesopotâmios eram politeístas, da mesma forma adoravam vários deuses.

No período pré-dinástico da história egípcia (5000-3000 AC), os egípcios eram animistas puros, acreditavam que todos os seres eram animados por uma força divina amorfa, sem substância, atribuída aos deuses e espíritos. Essa força abstrata vai tomando formas mais concretas pelo uso de símbolos e representações com a adoção da escrita. Segundo o teólogo Reza Aslan, o panteão egípcio já estava completo no Antigo Império (2686-2181 AC) constituído por deuses humanizados.

As divindades indo-europeias foram construídas da mesma forma, deificando as forças da natureza. Diferente das divindades ditas pagãs, o deus hebreu, Javé, não estava em nenhuma dessas forças, mas em um domínio separado. Não era o Senhor de nada em particular. Era o Senhor de tudo, a fonte elementar do poder natural.

A obra de Karl Marx foi objeto de inúmeras leituras e reducionismos por diferentes intérpretes, mais interessados em adaptar seu próprio pensamento político ou religioso ao pensamento de Marx. O entendimento de Marx não é uma tarefa simples. Ela se presta aos mais diversos julgamentos e comentários, o que pode, em muitos casos, deturpar ou simplesmente transformar sua filosofia em um catecismo.

Em sua tese de doutorado, Marx investigou as diferenças entre as filosofias da natureza em antigos filósofos gregos e explicou que a originalidade de Epicuro foi quebrar a relação natural entre casualidade e necessidade, o que significa que não há nenhum princípio que possa explicar a existência do Universo que seja imaterial.

O Capital foi a obra fundamental do filósofo, sociólogo e economista alemão, publicado entre 1867 e 1883. Junto de O Manifesto Comunista, O Capital foi um dos livros que mais tiveram influência em fatos históricos na pós-revolução industrial e inspirou a Revolução Russa de 1917, a Revolução Chinesa em 1949 e a Revolução Cubana em 1953, entre outros movimentos que instituíram governos comunistas no mundo.

Marx foi traduzido para o russo por Lênin. Lênin tinha a habilidade de discutir temas complexos de maneira simples. Somente em 1889, Lênin iria conhecer O Capital e então se dedicou a traduzir O Manifesto Comunista. Quando lhe foi dada a oportunidade de aplicar suas ideias sobre o marxismo, Lênin provou ser um extremista impiedoso. A guerra civil que se seguiu à Revolução de 17 causou mais mortes que as baixas causadas entre soldados russos na I Grande Guerra.

Segundo o historiador Ian Kershaw, o comunismo foi o principal legado deixado por Lênin, mas é preciso lembrar que Joseph Stalin foi escolhido como sucessor, ocupando o lugar que parecia ser de Leon Trotsky. Kershaw descreve Stalin como lúcido e calculista, mas sua desconfiança paranoica foi fundamental em seu caráter e determinante em seu comportamento vingativo e friamente impiedoso.

Trotsky, escritor e intelectual marxista, organizador do Exército Vermelho e rival de Stalin na disputa pela hegemonia do Partido Comunista da União Soviética, tornou-se figura central da vitória bolchevique na Guerra Civil Russa. Afastado do controle do partido por Stalin, Trotsky foi expulso e exilado, refugiando-se no México, onde seria assassinado por um agente da polícia de Stalin.

A União Soviética não reconheceu as assinaturas do Império Russo nas Convenções de Haia de 1899 e 1907 como válidas, e recusou-se a reconhecê-las até 1955. Numa entrevista de junho de 2017, Vladimir Putin reconheceu os “horrores do stalinismo”, mas também criticou a “demonização excessiva de Stalin” por “inimigos da Rússia”.

Um número significativo desses massacres ocorreu no norte e leste da Europa antes, durante e após a II Guerra Mundial, envolvendo execuções sumárias e o assassinato em massa de prisioneiros de guerra, como no massacre de Katyn, e estupros em massa por tropas em territórios ocupados pelo exército vermelho, oficialmente denominado “exército soviético” desde 1946. Um estudo publicado pelo governo alemão em 1989 estimou que o número de mortos entre civis alemães na Europa Oriental era de 635 mil, sendo 270 mil resultados de crimes de guerra soviéticos.

José Guilherme Merquior, intelectual de direita, instruía que o liberalismo com preocupações sociais é a única doutrina política que cuida do ideal democrático. Os socialismos de Estado que se dizem democráticos não praticam a democracia como forma de governo. A democracia liberal social é realmente democracia. O antiliberalismo socialista repousa no idealismo e em promessas refeitas e adiadas de um paraíso utópico de liberdade.

A Freedom House, uma organização que monitora violações às liberdades políticas e de expressão, classifica os países em livres e não livres em níveis que variam de 1 a 100. Encabeçam a lista com 100 pontos Suíça, Finlândia e Noruega, democracias sociais consolidadas. Coreia do Norte, China, Arábia Saudita, Cuba, Venezuela e a Rússia são considerados países onde não há liberdade.

Países como o Brasil (72) e os EUA (83) são qualificados como livres. Acima de 90 pontos não há nenhum país onde sejam comuns violações de direitos civis, intolerância racial ou religiosa. São democracias acertadas por eleições livres regulares, que conheceram bem de perto os horrores do nazifascismo e do comunismo soviético.

Umberto R. Andrade, Ph.D. pela Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), ex-presidente da Adesg (Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra), general da reserva, ex-diretor do IME (Instituto Militar de Engenharia) e do Centro Tecnológico do Exército Brasileiro.

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