Desprezo pela vida

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laboratorio covid. Foto: divulgação
laboratorio covid. Foto: divulgação

O jornalista Marcelo Tas, em seu programa Provocações, na TV Cultura, faz aos seus convidados/as, no final de cada entrevista, uma pergunta: “O que é a vida?”. O convidado/a responde. Ele então repete a pergunta dando mais tempo para reflexão. As respostas refletem o modo de pensar, sentimentos, valores etc., derivado de um conjunto de crenças e experiências, que pode ser chamado de filosofia da vida.

Para alguns a vida é confiar em nossos sentimentos, enfrentar desafios, encontrar felicidade, valorizar as lembranças e aprender com o passado. Para outros, mais angustiados e pessimistas, a vida é uma sala de tortura, da qual somente sairemos mortos.

Vamos considerar que a vida é uma aventura com grande bem-estar ou com grande sofrimento, dependendo se a pessoa pertence ao seleto grupo da Casa Grande ou do numeroso grupo da Senzala. No Brasil, tanto no período colonial e no republicano, a desigualdade social foi permeada pela colonização, escravidão, exploração e governos incompetentes que perpetuam essa realidade.

A endemia da Covid-19 dissipou a cortina de fumaça e expôs com uma clareza poucas vezes vista as dificuldades e o sofrimento das classes menos favorecidas. Desemprego alarmante, famílias sem alimentos, empresas desativadas, inflação batendo nas portas, juventude sem esperanças no futuro, negacionismo, terraplanistas, partidos sem bandeiras, destruição e mercantilização dos recursos naturais, milícias institucionalizadas, violência, corrupção, demagogia, política de saúde deficiente, informações falsas e falta de vergonha fazem parte do cenário que prenunciam um caos social.

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A endemia está sendo enfrentada sem inteligência, sem escuta do que a ciência recomenda e contaminada por interesses políticos de se chegar ao poder ou nele permanecer. O número de óbitos é assustador, e o sistema de saúde se aproximando de uma situação crítica. O vai e vem das medidas para o isolamento social é um ingrediente que confunde a sociedade, assim como a propaganda enganosa de tratamentos precoces, um verdadeiro charlatanismo. Algumas decisões têm sido feitas visando mitigar a crise econômica esquecendo que o capital mais importante dos seres humanos é a vida. Viver é um privilégio e não uma condenação ao sofrimento.

Estamos pagando pelos nossos erros. Vejamos o que está acontecendo com a introdução das vacinas, até o momento, o melhor instrumento para conter a pandemia. Em tempo recorde, cientistas de todo o planeta já desenvolveram várias vacinas. No Brasil não foi desenvolvida nenhuma vacina. Dependemos de insumos e dos princípios ativos (IFA). A consequência é que teremos as vacinas necessárias para controlar a pandemia a longo prazo, meses ou anos. Enquanto isso teremos mais óbitos e seremos testemunhas de cenas de horror e desumanas como está acontecendo em nossa querida Manaus.

Temos um sistema de Ciência e Tecnologia sólido para desenvolver vacinas para a Covid-19 e outras doenças. Temos cientistas competentes e duas instituições – Fundação Oswaldo Cruz e Instituto Butantan – com experiência na produção de vacinas. O nosso sistema de pós-graduação forma milhares de doutores todos os anos, muitos deles sem emprego. Inteligências jogadas no ralo.

O nosso erro, que nos levou a essa dependência, foi o pouco investimento que fizemos no fomento à pesquisa no Brasil. Além disso a descontinuidade de projetos importantes acelera nosso retrocesso. Se tivéssemos uma política de estado para a Ciência e Tecnologia (C&T) não estaríamos lamentando a realidade brasileira que é vergonhosa e revoltante.

Estamos perdendo jovens talentos que encontram oportunidades nos países onde a C&T é levada a sério. O corte de bolsas, principalmente da Capes e CNPq é inaceitável. Vencer essa triste fase de obscurantismo é a nossa prioridade. Investir na educação de qualidade e na ciência nos tirará da posição de país periférico e dependente.

Vamos aprender com a pandemia que dependemos uns dos outros. Vamos lembrar o pensamento de Leon Tostói: “Na vida só há um modo de ser feliz. Viver para os outros”. Vamos transformar a nossa tremenda indignação em ações que possam resultar em uma vida digna para todos e também para as gerações futuras. Vamos eliminar o desprezo pela vida. Vamos celebrar a vida. Viva a vida.

 

Isaac Roitman é professor emérito da Universidade de Brasília, pesquisador emérito do CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências e do Movimento 2022-2030 o Brasil e o mundo que queremos.

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