Detalhes que separam o doce brega do chique

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Hoje vou falar sobre vinhos doces, uma qualificação que segue em dois sentidos contrastantes no imaginário do consumidor brasileiro, especialmente quando entramos em contato com o universo maior dos vinhos finos. “Suave” é uma qualificação muito comum na memória dos vinhos brasileiros. Para muitos, dentre os quais me incluo, a lembrança de muitas festas com verba curta e muita vontade de se embebedar; para vários, o velho vinhozinho doce de domingo, mais palatável do que os novos vinhos secos “chiques”.

Enfim, o perfil suave, quase abominado do vocabulário “enofílico”, esteve associado não apenas à doçura ou maciez que supõe, mas ao vinho de mesa que predominou (e estatisticamente predomina) na produção brasileira. Por ser feito de uvas americanas, mais apropriadas à produção de sucos, trata-se de um vinho de qualidade inferior aos vinhos finos de uvas viníferas, hoje amplamente disponíveis no mercado brasileiro. Mas há quem goste, e este não é o ponto da discussão. O fato é que esse quadro leva muitas vezes à percepção errônea de que: 1) vinho fino é sempre seco; 2) vinho doce é inferior.

Em primeiro lugar, temos que considerar que os mercados não são absolutamente indiferentes ao gosto do consumidor, pelo contrário, eles buscam sintonia e adesão a todo tempo. O consumidor europeu tradicional está mais habituado a beber vinhos mais secos no cotidiano, mas o paladar doce está longe de ser uma particularidade – o açúcar agrada muitos e há muitos séculos. Antes de se tornar um subproduto da cana-de-açúcar no século XI, já havia hidromel, mel, frutas secas doces, entre outras fontes adoçantes. Apesar dos problemas de saúde provocados pelo uso abusivo de açúcar, a indústria da alimentação deve aos refrigerantes, sorvetes, balas e milhares de produtos riquíssimos em açúcar boa parte do seu vulto milionário.

Sem entrar em juízos de valor do que é abusivo ou lesivo, o fato é que também, no caso do vinho, uma forma de conquistar consumidores globais, não habituados ao consumo dos vinhos tradicionalmente tidos como secos, foi tornar o produto bem frutado e palatável ao consumidor contemporâneo. Falo do vinho tinto comprado como seco, que, nas versões mais comerciais, muitas vezes apresentam caráter adocicado excessivo, apelativo, resultante de procedimentos enológicos que buscam “artificialmente” alcançar o perfil do novo consumidor – acostumado aos vinhos suaves e outras bebidas doces. Sendo assim, passa-se do suave ao frutado, distintos em qualidade, mas sem mexer muito na premissa da doçura.

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O segundo ponto, que nem todos conhecem, é que uma boa gama de vinhos tidos em alta conta no universo dos vinhos finos são vinhos doces, bem docinhos. Percebo em muitas das minhas aulas o quanto as pessoas ficam surpresas quanto à existência dos vinhos doces entre os finos e da real qualidade que eles podem alcançar. Essa surpresa se dá em parte por essa associação de que vinho doce (ou suave) é vinho ruim, por mais que se goste dele. No entanto, alguns dentre os mais consagrados e respeitados vinhos finos são os vinhos licorosos, frutos do fenômeno da “podridão nobre”, como o Sauternes, na França, ou o Tokaji, na Hungria – feitos de uvas desidratadas pela ação do fungo Botritys Cinerea. Há inúmeros vinhos feitos de uvas colhidas tardiamente e por meio de métodos para concentrar os seus açúcares – como o Vin de Paille, do Jura, os Muscats franceses, o Vin Santo da Toscana e o Reccioto della Valpolicella do Veneto.

Há ainda o mundo dos fortificados, mais familiares aos brasileiros, por causa do Vinho do Porto, que têm suas fermentações alcoólicas interrompidas, seguidas do acréscimo de aguardente vínica – assim se mantém uma alta concentração de açúcar residual no vinho, aliada à fortificação alcoólica. E o açúcar está presente também de forma residual mais aparente em muitos vinhos considerados secos. O modelo ímpar é o do Amarone della Valpolicella, um vinho tinto potente, produzido a partir de uvas que ficam secando, em galpões ventilados, depois de colhidas. A grande concentração de açúcares e aromas gera um vinho potente, de 16º alcoólicos, mas no qual é possível perceber os toques de um mosto muito maduro.

O açúcar residual é o que resta da frutose da uva não transformada em álcool pela fermentação – ele traz a sensação de doçura no vinho e, no caso dos vinhos licorosos ou fortificados, ele é expressamente alto. Pela legislação brasileira (Decreto 8.198, 2/2014), um vinho seco deve conter de 0 a 4g de açúcar por litro, um vinho demi-sec (meio-seco), de 4 a 25g/l, e vinhos doces (ou licorosos) devem estar acima de 25g/l, limitados a 80g/l para vinhos finos. Anteriormente, o seco poderia ter até 5g/l, patamar em que se encontram muitos vinhos tintos sul-americanos que chegam ao nosso mercado ou brancos mais frutados da Alemanha e Alsácia, por exemplo. Tendo como referência este sistema, esses vinhos passaram a ser rotulados como “meio-secos” no Brasil, informação presente no contrarrótulo, mas raramente percebida pelo consumidor, o que gera, entretanto, certo desconforto nos importadores, uma vez que a classificação remete ao estigmatizado vinho suave de garrafão.

Finalmente, já que não há dúvida de que ser doce não é um problema, o que torna mais aceitável o açúcar residual do vinho fino em relação ao vinho suave? Provavelmente, nada muito a ver com a doçura do vinho, mas com a qualidade do mosto das uvas viníferas frente as americanas, das cadeias de sacarídeos que formam seus açúcares, da acidez que cada uma porta e que serve como contraponto para a doçura do vinho, entre outras características que tornam as primeiras mais aptas para a vinificação.

Para saber mais sobre eventos, turmas abertas de formação em vinhos da Cafa Wine School, de Bordeaux, entre outros projetos realizados por Miriam Aguiar, visite miriamaguiar.com.br / Instagram: @miriamaguiar.vinhos

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