O discurso do presidente Lula na França, em evento internacional organizado pelo presidente Emmanuel Macron, tem várias qualidades, além de demonstrar, mais uma vez, a conhecida coragem do brasileiro por tocar em temas que desagradam as potências capitalistas ocidentais. O discurso, feito de improviso, depois de várias mudanças, como revelado, possui a grande capacidade de não se esgotar ali mesmo e de seguir produzindo interpretações e questionamentos que são muito úteis para o momento crucial que o Brasil e o mundo atravessam.
Curioso é constatar como o presidente Lula, que já foi um crítico do presidente Vargas, tendo revisado sua posição, disse por ele próprio em homenagem no Mausoléu de Vargas, em São Borja, projetado pelo comunista Oscar Niemeyer, quando também homenageou João Goulart e Leonel Brizola. Em determinado trecho, Lula descreve como os países exportadores de matérias-primas são obrigados a recomprar na forma de produtos industrializados, a preços muito mais caros, o fruto de sua sistemática exportação.
A coincidência com um discurso de Getúlio Vargas, proferido em 1906 quando encarregado pelos estudantes de Direito de Porto Alegre de representá-los, em saudação à visita do presidente da república, Afonso Pena, em sua ida à capital gaúcha. A Conspiração da História é como Getúlio Vargas denominava esta grave dependência colonial pela qual os países exportadores de produtos primários eram inapelavelmente obrigados a comprar, a preços multiplicados, os produtos fruto de sua própria exportação primária.
O que o presidente Lula revelou em sua candente alocução na França é que os países do sul não podem seguir nesta dependência injusta, reivindicando, dessa forma, o seu direito à industrialização, enfatizada pelo brasileiro. Neste momento, ele critica, com propriedade, a proposta de Acordo União Europeia-Mercosul, por não favorecer a industrialização dos desindustrializados e, além disso, por vir acompanhada de ameaça de sanções pelo seu não cumprimento.
Ora, ora, quem quer acordo não faz ameaças
sintetizou Lula ao seu modo.
O estudante de direito Getúlio Vargas rebelou-se contra aquela Conspiração da História, descrita no livro Era Vargas, de José Augusto Ribeiro, liderando a revolução cívico-militar, a Revolução de 30, cuja matriz era promover a industrialização com justiça social.
Sua advertência da juventude foi cumprida. Nunca o país se industrializou tanto em tão pouco tempo, edificando os direitos sociais e a seguridade social, valorizando o salário mínimo a alcançar o valor de US$ 500, o maior em toda a sua história até hoje.
Ocorre que, para Lula sintonizar-se com as corajosas pregações feitas na França, diante do presidente Macron, que mesmo não sendo um bolivariano, reestatizou todo o sistema de energia francês, por questão de segurança nacional, ele se defronta com uma renovada Conspiração da História, depois que a Era Vargas e suas conquistas foram demolidas pelos governos de Collor, Itamar, FHC, Temer e Bolsonaro, todos de marcada orientação antinacional.
O próprio presidente Lula tem denunciado a desindustrialização de que o Brasil tem sido vítima nos últimos anos. De fato, estatísticas confiáveis e economistas destacados, como Márcio Pochmann, reconhecem que o PIB Industrial do Brasil, em 1980, era superior aos PIBs industriais da China e dos chamados Tigres Asiáticos, SOMADOS!
Hoje, sequer alcançamos 30% do PIB da China! Andamos para trás, como disse Lula, também se referindo ao desmonte dos programas sociais e ao retorno do Brasil ao Mapa da Fome, de onde havia sido retirado pela ONU. Os governos citados acima foram todos eles vassalos da tirania videofinanceira, da ditadura financista do sistema da dívida pública, pela qual metade dos recursos orçamentários são esterilizados nas despesas desta dívida impagável, e que apenas se avoluma, enquanto o país se vê vítima do corte de gastos, que significa desindustrialização, falta de saneamento básico, de hospitais, de moradias.
Essa tirania da dívida se renovou na forma de Emenda Constitucional proibindo investimentos necessários e, mais recentemente, com a sabotagem clara do presidente Bolsonarista do Banco Central, contra a legítima pretensão do Governo Lula de priorizar a reindustrialização.
A destruição da Era Vargas, traição cometida pelo governo FHC, único brasileiro signatário do Consenso de Washington, e seus desdobramentos mais recentes, como a privatização da BR Distribuidora, gasodutos, oleodutos, e as taxas de juros anti-Brasil, tudo isso se soma e se volta contra a pretensão mais que legítima do presidente Lula de alavancar a industrialização.
O correto elogio que o presidente Lula fez à matriz energética brasileira, limpa e renovável, representa também o reconhecimento de décadas de intervenção estatal no setor energético, mas que recebeu recentemente o duro golpe com a privatização da Eletrobras e dos reservatórios de água, impedindo assim a necessária integração energética sul-americana, como já havia sido defendida anos atrás pelo presidente Hugo Chávez.
Hoje, Roraima é abastecido de eletricidade oriunda da Hidrelétrica Venezuelana de Guri, a preços muito mais baratos do que a eletricidade de termelétricas, obscuros negócios comandados por camarilhas golpistas do norte. Eis aí a superioridade da integração e da própria hidroeletricidade.
O próprio presidente Lula definiu como “bandida” a privatização da Eletrobras. Ainda não está claro se o presidente Lula seguirá o exemplo do presidente Macron, que reestatizou a energia na França, que também vem sendo reestatizada em Portugal, Alemanha, Inglaterra, México, ou se a Eletrobras, continuando privatizada, representará mais um obstáculo desindustrializante às pretensões de Lula.
Além do pesadelo da Eletrobras privada, que levou consigo a privatização das águas, surge no ar a ameaça da privatização da Copel, comandada pelos mesmos obscuros interesses que alienaram a Eletrobras, certamente sob o comando de bancos internacionais, obviamente interessados em confrontar a correta tese do presidente brasileiro em defesa da industrialização. A matriz não admite a industrialização da colônia! No caso da Copel, pelo menos, ainda resta a possibilidade – sob alcance do presidente Lula – de revogar o decreto presidencial de Bolsonaro, pavimentando o caminho da privatização.
No mais, vale ressaltar a corajosa defesa que o presidente Lula fez da dispensa do dólar, em troca do uso de moedas comuns regionais, evidenciando a necessária construção de relações monetárias não mais dependentes da moeda estadunidense, que não registra ter lastro em riqueza real.
O discurso de Lula nos traz inúmeros desafios para o desenvolvimento de ações políticas concretas, entre elas a de estimular uma necessária aproximação do gesto do presidente Macron, reestatizando a energia na França, com a esperada posição do governo federal em defesa da anulação da privatização da Eletrobras e da paralisação do processo de privatização da Copel. E, como na França, por uma questão de segurança nacional e pela industrialização.
No que tange ao elogio da matriz energética, há uma lógica comunicação com outro presidente, Getúlio Vargas, que criou a Eletrobras em 1954, visando à industrialização do Brasil, hoje uma correta obsessão de Lula.
Beto Almeida é jornalista.