Existem avanços na contratação de pessoas pretas, ainda que insuficientes, mas o maior gargalo está na permanência e no desenvolvimento dessas pessoas para que ascendam aos cargos de liderança. Esse foi o mote do debate do segundo Diálogos da Rede Anbima (da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais). Diversidade e inclusão marcaram o encontro online que aconteceu recentemente com cerca de 100 representantes de instituições dos mercados financeiro e de capitais.
A Rede Anbima de Diversidade e Inclusão busca fomentar os temas nos mercados financeiro e de capitais. “Precisamos olhar para a igualdade com foco nas diferenças, porque elas existem. Cada pessoa tem um ponto de partida, seja o CEP, a condição socioeconômica, raça, gênero. Também falar sobre baixar régua não faz sentido. A régua mudou. Barrar candidatos com base nas hard skills é um equívoco. Hoje os maiores talentos são aqueles que possuem soft skills para enfrentar os desafios do mercado”, reforçou a consultora Margareth Goldenberg.
O racismo estrutural é a base dessa visão excludente, com fortes raízes históricas, que repercutem no ecossistema corporativo até hoje. “O mecanismo racial brasileiro é muito sutil na entrada, mas muito potente na saída. A falta de habilidade do negro para o mercado de trabalho não é uma ideia recente. Essa ‘inaptidão’ ficou marcada pela escravidão e por outros momentos históricos”, explicou Raphael Vicente, diretor-geral da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, professor da Fundação Dom Cabral e diretor-geral de cursos da Faculdade Zumbi dos Palmares.
Ele recordou, por exemplo, que, em 1920, quando São Paulo se tornou um dos maiores polos industriais do mundo, havia uma política de branqueamento da população. “Era a ideia de que, para a nação se desenvolver, precisava clarear seu povo”, fase em que a entrada dos imigrantes europeus no país se intensificou para trabalharem em postos remunerados que, no passado, eram ocupados pelos escravos negros. Para Raphael, atualmente estamos passando da fase dessa compreensão, ou seja, de como o racismo tem interferido negativamente no mercado produtivo, para a de ação, que significa entender o que as empresas precisam fazer, quais metas traçar, como vencer culturas internas excludentes e de que maneira reparar os erros do passado.
Mesmo com o aumento de pessoas pretas nos times, ainda persistem quatro mitos sobre essa contratação: a falsa ideia da neutralidade e igualdade (“somos todos iguais, independentemente da raça”); resistência às ações afirmativas (“podem retirar privilégios ou cercear direitos dos demais grupos”); falta de qualificação (“não tem pessoas pretas especializadas nessa área”, “não recebemos inscrições de pessoas negras em processos seletivos”); e antagonismo entre meritocracia e diversidade e inclusão (a ideia de que é necessário “baixar a régua” para garantir a diversidade, o que comprometeria a meritocracia).
Cases
“Percebemos que contratar estudantes, estagiários, analistas negras e negros não respondia aos nossos objetivos de diversidade e inclusão. Era necessário criar uma ação intencional para envolver gestores das áreas”, disse Mariana Betzios, diretora executiva de Diversidade, Equidade e Inclusão da UBS. Ela conta que a área de D&I fez um diagnóstico para entender por que a contratação e permanência de pessoas negras estava aquém do esperado e detectaram que a empresa não era percebida como uma possibilidade para estágio e primeiro emprego. Também se depararam com gestores que diziam não achar profissionais desse grupo aptos para as vagas abertas.
Buscando mudar esse cenário, a UBS criou o Conecta Banking, um programa de estágio que promove a imersão de jovens negras e negros em investment banking durante quatro semanas. Na primeira edição, em 2023, a iniciativa recebeu mais de 2,2 mil inscrições. Os melhores candidatos estão concorrendo a duas vagas para Research e duas para Global Markets na instituição.
Para chegar a essa ação, foi preciso trabalhar o engajamento das lideranças, tendo a pauta da diversidade étnico-racial como estratégia do negócio, garantir recursos para execução e criar espaços de debate sobre a temática. “A diversidade não é uma responsabilidade do RH. É uma percepção de marca, de negócio”, ressaltou Mariana.
No Bradesco, o AfroBra, um dos quatro grupos de afinidade da empresa, tem o papel de analisar o cenário da inclusão étnico-racial, propor ações e engajar o time. Com esse apoio, o banco desenvolveu uma trilha de letramento racial por meio da UniBra, universidade do Bradesco, em que os colaboradores se aprofundam nas raízes históricas do racismo e a importância de se promover uma educação antirracista.
“Temos uma parceria com o Programa Zumbi dos Palmares para contratar estudantes negras e negros, que passam por uma trilha de capacitação com colaboradores do banco como tutores, que também recebem formação sobre diversidade, empatia e gerações para desempenharem seus papeis no desenvolvimento de talentos. Essa parceria tem 18 anos e desde então pudemos empregar mais de 450 jovens”, explicou Luiz Henrique Costa, do grupo de trabalho de Diversidade e Equidade do Bradesco.
Para acelerar a carreira desses jovens, desde 2021 foi criado um programa de mentoria online, realizado por colaboradores voluntários, também formados para essa função. Como parte do objetivo de promover equidade étnico-racial, o banco desenhou um programa de empreendedorismo, com foco em educação financeira, para fortalecer a gestão de recursos e ampliar a renda de comunidades indígenas que vivem do artesanato. Em um ano, a iniciativa beneficiou 111 pessoas e apoiou 30 artesãos.
Gilvan Bueno, sócio da Órama, provocou diferentes reflexões sobre o que tem sido feito para, de fato, viabilizar o desenvolvimento profissional de profissionais negros a fim de que ocupem cargos de liderança. Para ele, “é preciso que a gente faça algumas perguntas, como: quantos sócios negros as empresas têm? Porque me parece que estamos fazendo mais do mesmo e não conseguimos avançar, sem sair dos projetos que se limitam à base da cadeia”. Ele acredita que corporações menores, por exemplo, terão dificuldade de criar programas de formação e ações similares porque faltam recursos.
Por isso, Gilvan tem implementado iniciativas por meio do Instituto Consuelo News, que ele mesmo fundou. A organização faz parcerias com outras instituições e leva capacitação para favelas e periferias com foco nas áreas de ciência, tecnologia e engenharia. “Também ensinamos como usar o LinkedIn para se apresentar ao mercado, elaborar um bom currículo, fazer entrevistas”, explicou. O instituto conta com voluntários para apoiar as ações, parcerias com organizações do mercado financeiro, como a Anbima, sustentando boa parte das iniciativas com o ISS (Imposto Sobre Serviço) direcionado aos projetos por diferentes corporações. “A gente criou um ‘lego’, conectando outras pessoas, saindo desse mundo individual para olhar o que os outros estão fazendo”, concluiu.
A Rede Anbima de Diversidadee Inclusão busca fomentar os temas nos mercados financeiro e de capitais. A partir deste ano, qualquer pessoa de instituições do setor pode fazer parte da plataforma – em 2022, ela era restrita a associados. O objetivo da mudança é estimular ainda mais a transformação do nosso mercado, com o aumento da representatividade e do estímulo à adoção da cultura inclusiva.
















