Revolução tecnológica, orçamento e política nacional de defesa

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No final de julho deste ano de 2020, o Ministério da Defesa entregou ao Congresso Nacional atualizações da Política e da Estratégia Nacional de Defesa. Além de mudanças pontuais e pequenos ajustes, o marco polêmico do conjunto de documentos foi a demanda apresentada pelos militares por um aumento na destinação orçamentária “regular” de 2% do PIB brasileiro.

Esse aumento seria empregado para “desenvolver os setores estratégicos de defesa (nuclear, cibernético e espacial)”, o que se traduziria na continuidade da fabricação de diversos itens. Compõem essa iniciativa tecnológica submarinos convencionais e nuclear, aquisição do novo modelo de caça de quarta geração (e meia) já desenvolvido, bem como um novo avião de carga nacional, a produção de blindados para transporte de tropas e outro para lançamento de foguetes, além da manutenção e equipagem de um Centro de Defesa Cibernético e um sistema de monitoramento de fronteiras, dentre outros armamentos.

Todas estas iniciativas serviriam para alicerçar uma “Base Industrial de Defesa” mediante uma política de compras públicas. Apesar do incentivo inicial do Estado, pretende-se que as empresas da base industrial sejam também financiadas sempre que possível pelo mercado, seja mediante aquisições de outras nações, ou pelo conjunto da sociedade nas tecnologias de uso dual, como armas de fogo, por exemplo. Assim se obteria alguma autonomia no fornecimento de armamentos, que seriam produzidos localmente, embora necessariamente ainda utilizando tecnologia estrangeira. Seria uma redução de exposição, não sua completa eliminação, visto que a completa independência é difícil até mesmo para as grandes potências militares.

Quase todas as citadas iniciativas foram principiadas de 2008 a 2013, em um período de bonança arrecadatória. Quando os ventos da economia e também da política mudaram, os valores destinados para esses projetos começaram a sofrer contingenciamento, ameaçando o tempo previsto para sua conclusão e entrega, bem como fazendo aparecer o fantasma da obsolescência. Outra grande ameaça veio se dando no viés da política econômica, em que uma agenda neoliberal vem priorizando a abertura do mercado em detrimento do fortalecimento de uma base produtiva nacional, com o decorrente risco de seu esfacelamento.

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Como todas as dimensões do plano de defesa são importantes políticas de Estado e, como será visto, fundamentais à soberania do país em médio e longo prazo, a lógica utilizada pelos gestores de defesa foi pragmaticamente reivindicar o aumento e a regularidade dos recursos para garantir o fluxo de continuidade dos projetos.

Paradoxalmente, embora a demanda de 2% do PIB esteja até mesmo aquém das necessidades estratégicas do Brasil, as justificativas apresentadas pelo setor de Defesa não captam e, portanto, não respondem de forma adequada a parte da nova conjuntura tecnológica de competição entre potências, bem como não percebe, e não dialoga, com a desconfiança de parte da sociedade, ao não abordar a qualidade dos gastos e investimentos realizados atualmente.

Sem a adequada compreensão destas questões tanto por parte das Forças Armadas, quanto do conjunto da sociedade brasileira, chega-se a um jogo de soma zero, em que dificilmente qualquer política de Estado será mantida em longo prazo. Assim, é fundamental o entendimento estratégico de tais questões para que seja avaliado adequadamente se o orçamento pedido responde às necessidades do país, bem como se tais recursos serão bem utilizados.

A princípio, a continuar a inércia atual, tende-se a um diálogo de surdos, em que as diferenças culturais e de percepção literalmente impossibilitam qualquer evolução positiva do debate. Neste sentido, o desafio a ser dirimido aqui é o de auxiliar na análise de um contexto externo de profundas ameaças, ao mesmo tempo que também ajude a pensar qual a estrutura de defesa se precisa construir para enfrentá-las.

 

Revolução tecnológica nos assuntos militares

Adentrando as profundas mudanças no atual paradigma tecnológico, o primeiro desafio é o entendimento de qual o impacto militar quando revoluções processuais acontecem, mas não são percebidas a tempo em toda sua profundidade. Na década de 20 do século passado, o capitão inglês Basil Liddell Hart afirmou que os exércitos infelizmente tinham a repetitiva tendência de se preparar para o tipo de guerra travada anteriormente, em detrimento dos conflitos do futuro.

Sua frustração se deu por ter passado quase 20 anos preconizando profundas mudanças nas forças blindadas britânicas, que em sua visão deveriam ser completamente reestruturadas, com ênfase em autonomia e capacidade de deslocamento. Em que pese sua heroica perseverança, escrevendo textos e livros, realizando palestras, liderando iniciativas, contatando personalidades, não foi ouvido pelos próprios compatriotas e tampouco pelos principais aliados, como a França.

Por outro lado, seu prognóstico para a guerra futura se mostrou profundamente acertado, quando nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial, os alemães, seus inimigos, fizeram uso das teorias de Liddell Hart, potencializando o conceito de guerra de movimento com a guerra relâmpago, ou blitzkrieg, em que a integração de bombardeiros, caças, forças terrestres e forças mecanizadas independentes mudou radicalmente o paradigma dos conflitos daquele contexto.

Desta forma, embora a França tenha passado 20 anos construindo um sofisticado sistema de trincheiras (linha Maginot) que responderia às demandas da última guerra, em questão de semanas viram-se cercados dentro de suas fortificações ante o rápido avanço das forças panzer. Infelizmente, os alemães teimaram em inovar completamente, alterando profundamente suas táticas de combate de uma guerra para a outra.

Apesar do fato de que tecnologias como o tanque de guerra, as tropas de choque, bombardeiros e caças existissem desde a Primeira Guerra Mundial, a maturação do seu melhor emprego se deu com a Segunda Guerra. Ou seja, a experiência histórica demonstrou que quando surgem novas tecnologias o seu emprego de forma disruptiva exige tempo de maturação coletiva.

Mais do que simples dificuldade cognitiva, é igualmente um desafio sociocultural. Não basta a percepção de poucos indivíduos para concretizar mudanças dessa magnitude, são necessários os grandes coletivos. E alterar o comportamento de gigantescas quantidades de seres humanos é justamente onde reside a dificuldade central, pois significa mudar padrões culturais de comportamento herdado por décadas e até mesmo séculos.

Não se abandona abruptamente toda uma vida profissional, marcada por intensos treinamentos, investimentos de esforço pessoal, reconhecimento social obtido, cargos comissionados duramente alcançados, dentre outros fatores, porque um dado processo com que se trabalha se tornou anacrônico e pode ser obliterado por alguma nova invenção humana. Geralmente o novo terá que se impor mediante acontecimentos marcantes.

A lenda da cavalaria polonesa carregando sobre os panzers alemães ilustra adequadamente este comportamento tão humano. Mas para que este anacronismo se evidenciasse foi necessário um evento da magnitude da invasão da Polônia (e posteriormente da França) para que certas lições fossem aprendidas. No tocante à preparação para a defesa militar, se um conflito não vier, as estruturas caducas podem sobreviver de forma inoperante por décadas.

As profundas mudanças que a tecnologia da informação e derivados vêm provocando são um fenômeno análogo ao descrito pelo capitão Lidell Hart, cuja compreensão apresenta as mesmas dificuldades, senão maiores. Essa verdadeira “revolução nos assuntos militares” em curso não somente envolveria a digitalização do campo de batalha e o surgimento e emprego de um novo tipo de inteligência, como também o aumento exponencial das dimensões em que conflitos de interesses entre potências podem ser travados, muitas vezes acima da capacidade da compreensão humana.

Tanto o novo contexto tecnológico de defesa quanto a condição das instituições de defesa de lidarem com estes processos serão tratados nos próximos artigos. De antemão dois aspectos podem ser apresentados para reflexão. O planejamento de defesa brasileiro não identifica, em momento algum, a profundidade das mudanças em curso. E, como consequência, não são apresentadas mudanças significativas na estrutura das Forças Armadas de maneira a responder adequadamente esta nova realidade. Por fim, diversos setores sociais reclamam sistematicamente da política de defesa ou da demanda de recursos, mas não se dispõem a aprofundar de fato nas questões complexas envolvidas no tema.

Vladimir de Paula Brito

Doutor em Ciência da Informação.

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