El Salvador e o bitcoin: propaganda, fantasia e realidade

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Nayib Bukele (foto Governo de El Salvador)
Nayib Bukele (foto Governo de El Salvador)

Dessa vez, a novidade bombástica que sacudiu os chamados “bitcoiners” – os entusiastas do bitcoin e das criptomoedas – veio da pequena República de El Salvador. No início de junho, seu presidente, Nayib Bukele, anunciou que apresentaria ao Congresso do país um projeto de lei declarando o bitcoin moeda de curso legal. Poucos dias depois, em 9 de junho, a lei foi aprovada por ampla maioria parlamentar, com o seu artigo 1º (segundo informações do G1) conferindo ao bitcoin “irrestrito poder liberatório, ilimitado em qualquer transação”.

Desde então, tornou-se obrigatório aceitar bitcoins como meio de liquidação de quaisquer dívidas em todo o território salvadorenho, embora a lei isente dessa obrigação aqueles que “por fato notório e de maneira evidente não têm acesso às tecnologias que permitem executar as transações” com a criptomoeda.

Com isso, El Salvador tornou-se o primeiro Estado soberano a reconhecer o bitcoin como moeda e a aceitá-lo como meio para liquidar impostos, prerrogativa indispensável para tal. O feito imediatamente tornou o jovem mandatário salvadorenho, de apenas 39 anos, uma celebridade mundial. Entusiastas mundo afora o alçaram à categoria de herói e se alvoroçaram vislumbrando, afinal, o início da sua tão aguardada “revolução” mundial na qual o bitcoin e suas milhares de congêneres “tomarão” o lugar das moedas governamentais, vistas por eles como inerentemente obsoletas, ineficientes, usurpadoras, manipuladas e corruptas.

Será? Infelizmente para eles, não.

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De saída, bastaria um simples exercício para ilustrar a inconveniência contida nessa proposta. Suponhamos que o governo salvadorenho tivesse proclamado essa lei há um ano. No dia em que escrevi este artigo, os impostos arrecadados em bitcoins um ano antes valeriam, em dólares, cerca de quatro vezes mais – sem dúvidas, um ótimo negócio para o erário do país.

Todavia, os coletados há apenas um mês valeriam cerca de 35% a menos; os obtidos na última semana teriam perdido 5% do seu valor, enquanto os coletados nos últimos cinco dias teriam variado, em apenas 24 horas, entre 15% e -12%. Que tipo de governo poderia planejar e executar orçamentos e políticas públicas tendo como única referência um instrumento radicalmente instável como esse? Quais seriam as vantagens em fazê-lo?

Para os “bitcoiners”, as “vantagens” seriam, justamente, não existirem orçamentos e políticas públicas, pois em geral estão imbuídos dos mesmos valores libertários, antiestatais, que levaram os idealizadores do bitcoin a projetá-lo como um instrumento desempoderador dos governos.

Todavia o golpe decisivo nas suas (fantasiosas) pretensões está na própria lei que celebram. Isso porque ela também afirma que, para “fins contábeis”, o dólar dos Estados Unidos será utilizado como “moeda de referência”, destacando que “todas as obrigações em dinheiro expressas em dólares, existentes antes da data de entrada em vigor da presente lei, poderão ser pagas em bitcoin”.

Em rigor, El Salvador, que tal qual os seus vizinhos centro-americanos se encontra historicamente sob forte influência política, financeira e cultural dos Estados Unidos, já é um país dolarizado, tendo abandonado a sua moeda nacional, o colón, em 2001. E conforme a própria “lei do bitcoin” determina expressamente, o dólar continuará sendo a moeda corrente de fato no país, isto é, aquela que denomina as “obrigações em dinheiro”.

Assim, na prática, o bitcoin será usado pelos salvadorenhos apenas como um sistema de pagamento – provavelmente um mais rápido e eficiente do que os sistemas tradicionais hoje disponíveis no país – para montantes monetários denominados em dólares.

Nisso, não encontramos qualquer novidade: desde 2017, o Governo do Japão reconheceu o bitcoin, justamente, como um sistema de pagamento, conferindo aos seus usuários direitos legais. Todavia, não fez qualquer menção a reconhecê-lo como dinheiro, prerrogativa que foi preservada, em caráter de absoluta exclusividade, para o iene, a moeda nacional. Ou seja, o bitcoin foi legalizado pelos japoneses apenas como um sistema de pagamentos para transferir montantes em ienes.

Portanto a iniciativa do presidente Bukele mostra-se uma excelente peça de propaganda para posicionar El Salvador e o seu mandatário sob os holofotes mundiais, mas possuirá poucos fins práticos. Como a vasta maioria dos Estados nacionais hoje existentes, o país é dotado de soberania muito mais nominal que efetiva e, de fato, é tão fraco que já abdicou de ter uma moeda própria que seja usada no seu próprio território.

Por outro lado, não há registro de que Estados nacionais “reais”, soberanos, tenham adotado ou feito qualquer menção a adotar como “moeda” um sistema de pagamentos que, como o bitcoin, escapa inteiramente ao seu controle. Ao contrário, o que se verifica é que esses Estados estão começando a se apropriar do que as criptomoedas descentralizadas têm para lhes oferecer, que são as suas tecnologias inovadoras, visando adaptá-las aos seus interesses de controles e comandos centralizados e instituir as suas próprias moedas digitais.

É isso o que a China já pôs em prática com o seu renmimbi digital, lançado para testes desde abril do ano passado; o que o Japão e a Rússia anunciaram, há poucas semanas, que começarão a fazer já nos próximos meses; e o que o Brasil, os Estados Unidos e a União Europeia, entre vários outros – no final do ano passado havia mais de 40 bancos centrais pesquisando e desenvolvendo as suas próprias moedas digitais, segundo relatório do Bank for Internacional Settlements – vislumbram realizar nos próximos anos.

Enfim, tudo indica que essas serão as moedas digitais do nosso futuro: o renmimbi digital, o iene digital, o rublo digital, o dólar digital, o euro digital, em suma, as versões digitais das principais moedas governamentais. Moedas que, umas mais do que outras, como é próprio da sua natureza inegavelmente política, constituem dinheiros de fato e de direito, pois representam os comandos executivos das autoridades que as instituem, as garantem e as impõem nos seus territórios – e em alguns casos, até além deles – na medida e no alcance dos seus poderes resguardados, em última instância, pelos seus meios coercitivos.

Neste mundo inteiramente dominado por moedas governamentais e relações de poder, não há qualquer possibilidade real de que criptomoedas desarmadas, como o bitcoin, se imponham a ponto de suplantá-las. Afinal, como se vê no próprio texto da lei salvadorenha, tais criptomoedas já estão subordinadas àquelas moedas, não servindo para muito mais do que especular com a flutuação dos seus preços e transferir montantes de forma mais rápida e privada do que permitem os sistemas financeiros tradicionais, pesados, caros e intensamente vigiados.

Dessa forma, também não será dessa vez que as criptomoedas ameaçarão as instituições estabelecidas. Delas, não se deve esperar mais do que serem adotadas como sistemas de pagamentos em países de soberanias e moedas falidas. A não ser para os sonhadores que, dominados pelas suas obsessões ideológicas, insistirem em não entender o que realmente é o dinheiro e preferirem celebrar a grande, pujante e influente potência salvadorenha como a nova baluarte de uma irresistível tendência mundial.

 

Daniel S. Kosinski é doutor em Economia Política Internacional (UFRJ) e membro do Instituto da Brasilidade.

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