O tema de hoje é novela — ou melhor, o vinho na teledramaturgia brasileira. Mais especificamente, na novela Vale Tudo, que, em sua versão original, eu não cheguei efetivamente a assistir, mas tenho acompanhado em seu remake. No passado, vivenciei indiretamente as especulações sobre o assassinato de Odete Roitman e vi alguns clipes das cenas de Heleninha Roitman, que se tornaram um documento vivo do talento de Renata Sorrah. Agora, tendo a comodidade do streaming, posso ver a novela a qualquer momento e tenho disponíveis os capítulos das duas versões, o que me permite fazer algumas comparações entre personagens e contextos. Foi assim que algo me chamou a atenção: o vinho!
Meus amigos vão dizer que vejo vinho em tudo… e não é mentira! Mas gostaria de saber se as pessoas têm notado que o vinho entrou pra valer na narrativa da nova versão de Vale Tudo. E o mais interessante é que ele não está entrando como um quadro contratado, em forma de merchandising, como tem acontecido com outros produtos — de forma até grosseira e excessivamente propagandística. Não. O vinho que tenho visto não é aquele com garrafa e nome do produto, numa cena criada para a entrada da marca. O vinho tem entrado em cena com uma frequência, para mim, surpreendente, permeando o cotidiano dos personagens.
Boa parte das cenas que mostram encontros românticos ou entre amigos, jantares em restaurantes ou em casa, reuniões familiares, entre outros, envolve taças de vinho. E não estamos falando de um filme que se passa na França, na Itália, ou de uma novela cujo contexto é a produção de vinho. Estamos falando de uma novela cujas cenas se passam, em grande parte, no Rio de Janeiro, especialmente no contexto elitizado das famílias e amigos dos Roitman. Mesmo sendo um ambiente mais propenso ao consumo de vinho, há certamente uma representação que mostra o deslocamento do lugar desse produto no Brasil ao longo de 20 a 30 anos.
Quando se verifica as cenas semelhantes na versão original, a bebida que permeava esse cotidiano da elite era o uísque — bebida que hoje ficou mais associada a poucas situações e a alguns personagens. O uísque continua presente, especialmente quando a bebida alcoólica aparece como algo tóxico, como nas recaídas de Heleninha. Nesta e na outra versão, o uísque é a bebida por excelência do personagem Rubinho, o doce pianista frustrado que afoga suas mágoas ao lado de um copo e se empanturra de cigarros. O personagem morre cedo, encarnando o imaginário de alguém com hábitos autodestrutivos.
Aliás, na versão de 1988, Rubinho era um fumante mais agressivo do que os demais — fumava até enquanto comia um sanduíche. Mas havia outros fumantes, e o cigarro aparecia com frequência em ambientes fechados — o que claramente mudou na novela e na cena da sociedade atual.
E o vinho, sim, se tornou o “queridinho” de vários encontros — muitos deles de recreações moderadas, como um acompanhamento da refeição. Ele aparecia, sim, mas eventualmente na versão original e, em muitos casos, em forma de espumante para grandes comemorações, bebido não em flûtes, mas naquelas taças bem abertas para champanhe, que hoje quase não se usam mais. Há uma cena de comemoração familiar, dentro do segmento mais classe média da novela, em que o vinho que aparece é um tinto de garrafão de 5 litros — hoje ainda presente no mercado, mas pouco evidenciado.
Fiquei me perguntando quais seriam as motivações para a maior inclusão do vinho nas cenas da novela. Creio que continue sendo, em parte, pela perspectiva mais sociológica “bourdieusiana”, em que o vinho e os hábitos de consumo funcionam como sinalizadores de status — uma forma de distinguir grupos mais elitizados pelos seus hábitos. Mas acho que pode ser também um dado representativo de que o vinho começou a ocupar um espaço maior no cotidiano brasileiro, mesmo que ainda elitizado.
Como disse, no contexto mais próximo da versão original — ou seja, cerca de 20/30 anos atrás —, o vinho era mais “estrangeiro”. No lugar das bebidas mais sofisticadas estavam as destiladas, especialmente o uísque, que hoje aparece menos, talvez por ser considerado mais tóxico. O vinho, na maior parte das vezes, me parece ter uma conotação de ser a bebida dos que “sabem beber” moderadamente — embora, em um capítulo recente, uma cena tenha me surpreendido: a personagem Celina, normalmente bem-comportada, se embriaga com vinho vertido em goles rápidos, assistida por seu mordomo, que a acompanha com um decanter em punho, contendo um tinto de bela cor rubi.
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