Nestes Ensaios que percorremos algumas das governanças, com diferentes tempos históricos, que foram implementadas em reinos, impérios, repúblicas, independentes e colonizados, acreditamos ter se evidenciado uma qualificação: a nacional.
Sendo a governança uma relação de poder, é difícil ser copiada de outras, executadas em realidades geográficas diferentes, por culturas construídas em histórias ligadas a fenômenos distintos, enfim, por povos e locais estrangeiros.
Estas avaliações foram descritas nas experiências malogradas. Não se trata de juízos de valor nem de crenças religiosas ou ideológicas. Trata-se da realidade construída na interação de um povo com a natureza, melhor se diria, com os recursos naturais do espaço em que se formou sua identidade.
Ser nacional é portanto a qualificação primeira da governança. Vamos discorrer sobre o que é ser uma governança nacional. Para evitar qualquer viés político partidário, examinemos um país estrangeiro e sua construção da governança atingida neste século 21.
É, também, importante verificar que a governança, sendo uma resultante cultural, ela varia no tempo, nas tecnologias disponíveis, na compreensão do povo, ou seja, ela tem tempo e local, pode surgir das mesmas forças, mas é para aqui e agora.
O exemplo que usaremos é da China, que desenvolve o modelo “socialista com características chinesas” para sua governança. Examinemos historicamente esta construção política.
A China se formou num vastíssimo território, a sudoeste com o complexo de montanhas do enrugamento himalaio, grande zona de estepes, com desertos e regiões cultivadas, entre florestas siberianas e planícies de aluvião, até encontrar o Oceano. E tendo a leste a península coreana e as ilhas nipônicas. Com mais de nove milhões de quilômetros quadrados, varia de temperatura do frio e seco norte ao quente e úmido das florestas tropicais, próximas ao Mianmar, Laos e Vietnã.
Esta diversidade da geografia física encontra imensa unidade populacional, pois mais de 90% do povo pertence à etnia “han”. Conforme dados arqueológicos, os homens chegaram à China entre 30 mil e 15 mil anos, pois é o tempo que medeia a saída do Oriente Médio e a chegada à América. E encontraram locais e climas propícios à agricultura, ali ficando e desenvolvendo sua cultura. A unidade étnica favoreceu a construção de modelo centralizado de governança, o que caracteriza a China até hoje. Também, por se dedicarem à agricultura e rapidamente evoluírem da agricultura de subsistência para a de trocas, os chineses mostraram a capacidade de lidar com as realidades, o que fez o povo onde mais de 90% da população não acredita em deus ou deuses.
Por conseguinte, o poder centralizado e não religioso não é resultado do marxismo-leninismo, implementado a partir de 1949, e já bastante submetido às “características chinesas”, mas à própria construção milenar da identidade nacional.
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A Questão Nacional
Vivemos no Brasil, desde a década de 1980, ou seja, desde o denominado processo de redemocratização, a invasão ideológica neoliberal. A democracia, em si, não trouxe o neoliberalismo, mas o acompanhou, e, na retórica dominante, a ele foi associada, de modo que a retomada das liberdades civis foi mais efetiva para poucos do que para muitos.
De certo modo permanece a submissão do País a ideologias e governos estrangeiros que tem sido a mais constante governança brasileira: a colonial.
Períodos de autonomia foram poucos: dos governos de Getúlio Vargas (13 anos) e dos militares de 1967 a 1979 (outros 13 anos). De acomodação com interesses estrangeiros tivemos também poucos, o de João Goulart e o de Juscelino Kubitschek, que sofreram golpes ou tentativas de golpes de Estado.
Mas tivemos notáveis intelectuais que elaboraram projetos, discorreram sobre política nacionalista como o Patriarca da Independência, paulista José Bonifácio de Andrada e Silva, os fluminenses Alberto Torres e Oliveira Viana, o gaúcho Júlio de Castilhos, o mineiro Darcy Ribeiro, além do próprio Vargas. E como o mais notável operador nacionalista, o único a governar dois estados, Leonel Brizola.
O que vem a ser a Questão Nacional? Fundamentar a organização do Estado Brasileiro e sua governança na mais arraigada percepção nacional, naquela que se formou pela luta para sobrevivência, pela domesticação da natureza, pela mistura de raças e crenças que formam o brasileiro, um ser específico. É nesta individualidade, como nos “Han” chineses, que se constrói nossa estrutura de organização e nossos padrões de governança.
Veja-se pelo período que se denomina os “50 anos gloriosos” ou a “Era Vargas” que vai de 1930 a 1980. Foram períodos autoritários, com o poder centralizado no Executivo, com o Congresso muitas vezes fechado e o Judiciário modificado em número de ministros no Supremo Tribunal Federal (STF) e na designação de magistrados pelo Poder Executivo.
Mas seria estranho à formação do Poder no Brasil? De modo algum. Sempre tivemos um poder que se sobrepunha aos demais, na Colônia, no Império, na formação da República – Deodoro e Floriano – e no período republicano, como mencionado.
Também, regionalmente, sempre fomos o país dos “coronéis”, autoridades regionais que impunham suas vontades, acima do poder público, em distritos, municípios e mesmo Estados que constituíam a Nação.
Se isso se dá pela falta de construção da cidadania, não significa que não exista e, com certeza, será muito melhor absorvido pela população do que a “democracia”. Que nem é efetiva, pois o povo não participa das decisões, nem mesmo uma pálida imagem ideológica, pois os próprios candidatos saem de um núcleo de poder partidário, religioso, ou regional (coronelista).
A natureza do poder, onde quer que exista, é hierárquica. A distribuição igualitária de poder é uma utopia que ainda não se verificou em parte alguma. Resta saber, porém, quem exerce e a quem serve o poder central. Se é à Nação, temos o nacionalismo; se é às altas finanças, o neoliberalismo.
Portanto, a estrutura organizacional brasileira, mais coerente com nossa formação cultural, deve ser composta de um poder central e nacional, o Presidente, e como órgãos participativos, as Assembleias que serão muitas, pois organizadas regionalmente e por setores técnicos (educação, saúde, habitação, energia, saneamento, infraestrutura etc.).
O Presidente poderá ter Vice-presidentes que reúnam conteúdos de mesmo objetivo, por exemplo: Defesa Nacional, Construção da Cidadania, Energia e Infraestrutura e outros. O que hoje denominamos Poder Judiciário pode compor o detalhamento da Construção da Cidadania como Garantia dos Direitos, incluindo as fases da prevenção, da investigação, do julgamento e da gestão penitenciária.
Uma nova Constituição voltada para a cultura brasileira, estruturando o Estado conforme as mais profundas raízes, que nem são religiosas, como se tenta impingir. Na verdade, autores religiosos, como filósofos de diversas épocas, distinguem a superstição da religião. O brasileiro, em sua mistura de crenças e ritos, deve ser entendido como povo supersticioso, não religioso. E esta não deve ser uma questão de organização do Estado Nacional, nem para garantir nem para impedir direitos, mas a manifestação individual de cada um. Fica no campo das liberdades que permitem torcer por clubes de futebol, preferir tipo de comida e bebida ou professar ou não qualquer fé ou crendice.
O trabalho
São duas as vertentes que constroem a economia de uma Nação, diferentemente de uma família, como erroneamente ensinam os comentaristas das redes de televisão. Ou está fundamentada no trabalho ou no capital.
Faz-se mister definir ambos, para evitar mal-entendidos. Por trabalho, se entende toda ação intencional e planejada de modificação do meio. O trabalho é o processo de humanização do mundo, de superação da natureza pela construção da cultura. Por capital, se entende a acumulação privada de excedentes socialmente produzidos.
Naturalmente, o capital pode ser trabalhador, quando se dedica a empreendimentos úteis, empregadores de trabalho. O lucro afigura-se assim como recompensa legítima pelo risco. O capital se torna lesivo quando se aparta da economia física/real e se torna parasita da sociedade. Temos, assim, o capitalismo, sistema que consagra a prioridade do capital.
O mundo neoliberal no qual vive o Brasil e o mundo ocidental, desde o final do século passado, está baseado no capital. O que nos faz afirmar, por exemplo, que a Constituição dos Estados Unidos da América (EUA) criou o país plutocrático, ou seja, governado pela riqueza, logo pelo capital que a hierarquiza.
Ao lado da nacionalidade construtora da governança nacional, o trabalho é, e estará assim definido formalmente, a única modalidade de construir riqueza. Vejamos algumas consequências destas definições.
Se o trabalho fundamenta a economia nacional, o salário passa a ter a importância que hoje se dá à dívida financeira, ou seja, será o orientador dos orçamentos, das aplicações, dos investimentos.
Assim, ele não pode ser aviltado, ao contrário, deve ser valorizado para que mais dinheiro circule e mais se produza, mais se crie, mais tecnologia seja desenvolvida para fabricar usando as riquezas naturais do país.
Em vez de “ajustes fiscais” para encolher o dinheiro em circulação, ter-se-á o salário para exigir mais manufaturas, mais conforto, mais produção. Não se falará de “superávit fiscal”, mas de investimentos em energia, em infraestrutura, em tecnologia, para que mais e melhor a população possa ser atendida.
Teremos uma sociedade onde a educação estará aliada ao trabalho, porque o trabalho é valorizado e quanto mais e melhor produz mais se ganha. Hoje um engenheiro dirige uma moto como “uber”, sem salário, sem condição de melhorar que não seja expondo a vida e a saúde, para realizar mais entregas e receber um pouco mais.
O trabalho exige emprego, e o emprego é regulado por leis de proteção à vida e à saúde, impede portanto o incitamento, o encorajamento ao risco, à saúde e à vida.
Em vez de meta de inflação, que significa encolhimento da economia, submissão a padrões estrangeiros de câmbio, de juros, que levam ao déficit nas transações correntes, tem-se a meta de emprego, que expande a industrialização no País, a valorização do estudo, pois a indústria, pelas próprias condições de desenvolvimento, exige, cada vez mais, mão de obra qualificada.
Pela simples posição do trabalho na sociedade já se estará democratizando o País, pois a imensa maioria dos brasileiros não é rentista, mas trabalhadora. E substituir o banco pelo sindicato significa substituir um homem rico e provável corruptor, por centenas de trabalhadores, vigilantes com a lisura dos gestores.
O Brasil é possuidor de enorme riqueza mineral e pode, sem grandes investimentos, voltar a ser autossuficiente em energia. Logo, tem as condições fundamentais para se tornar grande potência na esfera internacional. Falta governança.
O que estamos aqui propondo é a mudança dos referenciais importados pelos nacionais, quer na organização política do País, quer no referencial econômico.
Organizando o Brasil de acordo com a tradição histórica que mais riqueza trouxe para o País, com as orientações dos seus melhores estudiosos, e alterando radicalmente o referencial de sua economia do capital para o trabalho, em menos de um lustro teremos outro País, mais seguro, mais produtivo, mais honesto e feliz.
Isso também depende de cada um de nós.
Felipe Maruf Quintas é cientista político.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.