A história dos Estados Unidos da América (EUA) é a história da construção de modelo de governança e de Estado que permitisse afirmar não só a independência política e econômica em relação à Europa mas, e principalmente, sua ambição imperialista e totalitária de hegemonia sobre todo o mundo.
A Independência dos EUA levou à rejeição consciente do modelo de economia colonial ditado pela Grã-Bretanha, com o intuito de criar as condições para a industrialização e, portanto, para o aumento do poder nacional, com o qual os EUA, desde seus primórdios, enquanto Confederação autônoma, pretendiam ditar as regras sobre o restante do mundo.
O “Destino Manifesto” (1845), pelo qual os EUA se viam como encarregados da missão “divina” de ocupar os territórios ao oeste para chegar ao Pacífico e a partir daí exercer domínio mundial, não era simples autoexaltação messiânica, mas projeto de poder calcado na autodeterminação da forma de governo – republicana, e não monárquica – e na autonomia dos processos econômicos – industrial, não primário-exportador.
Segundo os Pais da Independência, especialmente os Federalistas, apenas a centralização administrativa governamental – levada a cabo nas guerras contra a Grã-Bretanha, a despeito da forma estatal confederada, que, ao fim, constituiu-se federação – poderia promover o desenvolvimento, simultaneamente industrial e militar, necessário para completar a obra da Independência e prevalecer no mundo.
A busca da industrialização nacional seria a continuidade e a garantia do processo de autonomização inaugurado pela Guerra de Independência. O desenvolvimento seria, assim, a dimensão do nacionalismo estadunidense, imperialista e chauvinista que fosse. Sem nação, não haveria desenvolvimento. E o desenvolvimento não existiria sem ação decisiva do Governo Federal, para criar as condições infraestruturais e financeiras para a alavancagem da indústria doméstica.
Coube a Alexander Hamilton, primeiro secretário de Tesouro dos EUA, durante a presidência de George Washington (1789-1798), formular o primeiro programa de desenvolvimento industrial dos Estados Unidos, delineado no seu “Relatório sobre as Manufaturas”¹ (1791), que seria a base para as políticas econômicas estadunidenses de praticamente todos os governos que se seguiram desde então.
Para Hamilton, a industrialização dirigida por Washington seria fundamental para a existência da nação recém-independente. Como ele afirmou no Artigo 11 dos “Federalist Papers”: “Sob um vigoroso governo nacional, a força e os recursos naturais do país, dirigidos ao interesse comum, desconcertaria as maquinações do ciúme europeu para restringir nosso crescimento”.
Para Hamilton, o desenvolvimento industrial não seria um fenômeno simplesmente econômico, mas político e geopolítico. Os EUA deveriam proteger seus fabricantes e produtores, expandir infraestruturas e se autofinanciar com sistema financeiro autóctone, para criar amplo e vigoroso mercado interno que aumentasse sua autonomia frente as potências europeias e sua capacidade de defesa e de projeção internacional.
Hamilton foi pioneiro do chamado “Sistema Americano de Economia Política”, definido por Henry Carey, discípulo de Hamilton e assessor de Abraham Lincoln, calcado na rejeição do livre-comércio, então controlado pela Grã-Bretanha, e na adoção do protecionismo sistemático que resguardasse, para cada nação, a soberania sobre seus recursos físicos e humanos, para o desenvolvimento econômico e o equilíbrio social internos.
Carey aponta, em contraste, o Sistema Britânico, também chamado por ele de “Sistema Colonial”, que propugnaria o livre-comércio e a plena abertura das fronteiras econômicas. A destruição das cadeias produtivas dos países economicamente mais frágeis, em prol das manufaturas dos países mais avançados (no caso, a Grã-Bretanha), favoreceria os monopólios ligados ao comércio exterior e engendraria a desorganização doméstica em prol das potências já estabelecidas.
Na história estadunidense, a expansão agrícola ao oeste, baseada na mão de obra livre, na moderna agricultura familiar e nas mais avançadas tecnologias de guerra, que permitiram o confisco de metade do território mexicano, associou-se fortemente ao industrialismo do norte, protecionista conforme preconizado por Carey. Isso fortaleceu, dentro da correlação de forças da federação, o capitalismo industrial e protecionista do norte em detrimento do neocolonialismo agrário-exportador e escravista dos estados sulistas.
Esse realinhamento de forças provocou a escalada de tensões domésticas que culminariam na Guerra de Secessão (1861-1865), quando o Norte, industrial e protecionista, líder da União e aliado ao Oeste em expansão, derrotou militarmente o Sul, primário-exportador e liberal, que ambicionava formar uma Confederação autônoma.
Os estados sulistas foram, então, desligados da órbita informal da Grã-Bretanha e incorporados à economia nacional industrial estadunidense, que, assim, deslanchou uma Revolução Industrial de alcance nacional, liderada pelo capitalismo protecionista do Norte.
O líder da União, representativa das forças do Norte, Abraham Lincoln, era ferrenho defensor do Sistema Americano. Seus sucessores, desde Ulysses Grant (1869-1877), aplicaram sistemática e conscientemente políticas protecionistas e de incentivo à construção de infraestruturas, seguindo a tradição de Hamilton e Carey.
Consequentemente, os EUA expandiram sua malha ferroviária, que saltou de 14.151 km, em 1850, para 85.000 km, em 1880, e para 278.409 km, em 1890; atraíram cerca de 4 milhões de imigrantes entre 1869 e 1892 e, pela Marcha ao Oeste, favorecida pela expansão ferroviária e demográfica, criaram nova classe agrícola, adaptada às técnicas mais modernas com a introdução do arado a vapor.
Formou-se, assim, nos EUA, a partir do aproveitamento das imensas possibilidades geográficas de país continental e bioceânico, uma variante corporativa de capitalismo, caracterizada pela integração vertical de cadeias, processos e subprocessos produtivos, internalizando as transações empresariais dentro de única empresa, reduzindo os custos de transporte e distribuição, agilizando os circuitos industriais e permitindo maior utilização do planejamento de longo prazo, reduzindo as incertezas.
Essa revolução organizacional, que se tornou dominante nos EUA a partir do final do século 19, conferiu ao capitalismo estadunidense imensa vantagem em relação ao britânico, que, caracterizado pela dispersão produtiva entre diferentes unidades e dependente do provimento de matérias-primas e insumos fora do seu território, assegurado pelo imperialismo de livre-comércio, perdeu paulatinamente suas vantagens competitivas frente à antiga colônia. Entre as potências industriais, os EUA passaram do 5º lugar, em 1840, para o 4º, em 1860, para o 2º, em 1870, e para o 1º, em 1895.
O aumento da dívida externa estadunidense, de US$ 200 milhões em 1843 para US$ 3,7 bilhões, em 1914, foi acompanhado de significativo desenvolvimento das forças produtivas a partir da ampla base geográfica e demográfica, que lhe conferiu vantagem, relativamente à Alemanha, outro país que se industrializava rapidamente.
Com a Primeira Grande Guerra, os EUA liquidaram a dívida externa tornando-se credores da Inglaterra, cujo principal devedor, a Rússia, tornou-se insolvente e, ainda mais, caiu em mãos de revolucionários marxistas, deixando a Grã-Bretanha em situação crítica.
A agressiva penetração dos capitais estadunidenses na América Latina, inclusive com o uso da força contra a Espanha no Caribe, permitiu a Washington criar sua zona de influência no restante do continente americano, tomando espaço até então ocupado pela da Grã-Bretanha. Ampliou-se, para todo o Novo Mundo, a esfera de intervenção econômica e militar dos EUA, conforme predito na Doutrina Monroe, de 1823.
Essa situação permitiu, no entreguerras, a equiparação dos EUA a Londres na produção e regulação mundiais do dinheiro, preparando o caminho para a hegemonia do dólar.
A Quebra da Bolsa de Nova York em 1929, que gerou a maior crise do capitalismo desde então, mostrou que, de fato, o centro dinâmico do capital internacional já eram os EUA. O New Deal, enquanto pacto social multiclassista para a recuperação econômica dos EUA na década de 1930, com a eleição do democrata Franklin D. Roosevelt, requalificou o arcabouço tecnológico e industrial estadunidense e atualizou o liame do poder nacional daquele país, capacitando-o a exercer indiscutível liderança geopolítica e geoeconômica após o arruinamento geral da Europa na 2ª Guerra Mundial.
Mundo sempre em mudança
A hegemonia mundial do dólar finalmente viria ao fim da 2ª Grande Guerra. A ordem internacional pactuada na Conferência de Bretton Woods, em cidade homônima estadunidense no ano de 1944, do Sistema de Bretton Woods, consagrou a liderança do Sistema de Reserva Federal dos Estados Unidos e das novas instituições multilaterais a ela vinculadas, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (Bird).
O dólar, ainda associado ao ouro, substitui a libra esterlina como moeda-franca, refletindo, assim, a superioridade da indústria estadunidense e a sua capacidade de centralizar, nos EUA, o comércio internacional.
A preponderância financeira, industrial e tecnológica dos EUA permitiu-lhes atuar na reconstrução europeia após a 2ª Guerra. O Programa de Recuperação Europeia, mais conhecido como Plano Marshall, consistiu na transferência de linhas de crédito US$ 12 bilhões (equivalentes a US$ 130 bilhões, a preços de 2019) dos EUA para os países europeus, alinhados ao bloco capitalista, adquirirem equipamentos estadunidenses.
O Plano Marshall não foi tão determinante para os modernos Estados de bem-estar social europeus, construídos, em sua maior parte, pelos esforços internos, governamentais e societários, dos próprios países europeus. Contudo, teve maior expressão geopolítica pois determinou o alinhamento da Europa ocidental ao bloco militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), criada em 1949 para respaldar militarmente o dólar e, portanto, o sistema internacional de poder liderado pelos EUA.
O “Século Americano” foi a culminância da estratégia nacional de desenvolvimento construída pelos EUA desde a sua Independência, lastreada em governança nacionalista com pretensões imperialistas. O totalitarismo decorrente manifestou-se no controle dos EUA sobre os sistemas informacionais, culturais e militares, sobre toda sua esfera de influência, para não apenas dominar, mas convencer os dominados da legitimidade das hierarquias existentes.
O preço do sucesso, porém, seria a gradativa internalização do sistema financeiro britânico e a capitulação da governança ao que Carey denominou “Sistema Britânico”, que se tornaria hegemônico a partir de Ronald Reagan e do neoliberalismo.
O imperialismo prevaleceu sobre o industrialismo ainda que tenha se alimentado dele, e, ao subordinar os interesses nacionais dos EUA aos seus próprios interesses de acumulação mundial, desmantelou os pactos sociais e a própria indústria como locomotiva econômica do poder.
Consequentemente, a governança estadunidense foi capturada pela oligarquia financeira transnacional, não do mesmo tipo contra o qual se voltaram os Pais da Independência, mas acrescida dos capitais marginais, advindo das ações universalmente criminalizadas.
Desde então, os EUA se financeirizam na mesma velocidade em que perdem a dianteira tecnológica e industrial para nova potência, a China.
Hoje, o Dragão Asiático, que não se deixou seduzir pelo canto da sereia imperialista e não se rendeu ao totalitarismo estadunidense, representa muito melhor os valores e propósitos do “Sistema Americano” e colhe os frutos, em termos de desenvolvimento, capacidade de definição da ordem internacional e melhoria da qualidade de vida para sua população. E se espraia além das fronteiras com a Iniciativa do Cinturão e Rota, envolvendo cerca de 150 países.
(1) Na acepção da época, atividade produtiva. “Manufatura” tinha o significado atualmente atribuído à palavra “Indústria” (Vitor Grünewald, Geraldo Luís Lino e Josemar Rodrigues).
Felipe Maruf Quintas é cientista político.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.