Estreia oficialmente nesta quinta-feira (6) nos cinemas o filme francês que tem protagonizado acaloradas discussões nas redes sociais envolvendo a atriz Karla Sofía Gascón. As declarações polêmicas da espanhola – acusando a equipe de Ainda Estou Aqui de tentar diminuir seu filme e, depois, a revelação de tuítes antigos da artista com opiniões controversas sobre o assassinato de George Floyd e o aumento de muçulmanos na Espanha – impulsionaram uma desavença virtual que acaba, infelizmente, tirando o foco do filme que se tornou a produção de língua não inglesa com mais indicações (13) na história do Oscar, ao lado de outros 11 filmes americanos, como E o Vento Levou (1939) e A Um Passo da Eternidade (1953). Apenas três longas obtiveram mais do que isso (14 indicações): A Malvada (1950), Titanic (1997) e La La Land (2016). Os números acima dão a medida da qualidade de Emilia Pérez. Até porque, entre as 13 nomeações, a obra foi lembrada em praticamente todas as principais categorias: melhor filme, diretor, filme internacional, atriz, atriz coadjuvante, roteiro adaptado, montagem e fotografia, além de outros prêmios técnicos. Por isso, é injusto reduzir Emilia Pérez a discussões que gravitam ao redor de seus personagens fora de cena.
Assisti ao filme na pré-estreia e saí do cinema encantado com a maneira como o diretor francês Jacques Audiard conseguiu transformar em um musical um filme pesado que aborda questões ligadas ao tráfico de drogas, obviamente com violência.
Audiard usa a personagem de Sofía Gascón para fazer reflexões sobre as consequências do tráfico mexicano, responsável pelo desaparecimento de mais de 100 mil pessoas no país desde o início da década de 60. Gascón interpreta um poderoso chefão de um cartel local que decide fazer a transição de gênero e forjar a própria morte para se aposentar do crime. A atriz interpreta o homem antes (Manitas Del Monte) e a mulher depois (Emilia Pérez), e essa transformação lhe valeu uma merecidíssima indicação ao Oscar – a primeira pessoa trans a concorrer a uma estatueta da Academia. Ela disputa com Fernanda Torres, Demi Moore (a favorita), Mikey Madison e Cynthia Erivo.
Mas Sofía Gascón não brilha sozinha. Ela divide o protagonismo da trama com Zoe Saldaña, considerada barbada como melhor atriz coadjuvante. E quando falo que divide não é força de expressão. Saldaña interpreta a advogada que ajuda o traficante no seu plano de ressignificação de gênero e é ela quem conduz toda a história. A atriz canta, dança e fica em tela mais tempo que a personagem principal. É, sem dúvida, o papel mais marcante da carreira de Zoe Saldaña.
A atriz americana se destaca em praticamente todas as cenas musicadas. E é aí que a direção de Jacques Audiard faz a diferença. Ele consegue criar a atmosfera fantasiosa dos musicais sem falar de amor. Parece inacreditável, mas funciona muito bem, e esse talvez seja o grande sucesso de Emilia Pérez. Ao sair do cinema, a gente percebe que a maioria dos comentários vai nesse sentido: como o diretor conseguiu fazer um filme leve diante de um assunto tão violento e pesado?
Além Sofía Gascón e Zoe Saldaña, o elenco tem ainda Selena Gomez fechando o trio de personagens principais. A escolha das três, apesar de maravilhosa, gerou algumas críticas que o diretor está tendo de enfrentar nessa reta final do Oscar, sobretudo no México. Isso porque Jacques Audiard, que também assina o roteiro, filmou Emilia Pérez praticamente todo em Paris e usou atores mexicanos apenas para papéis secundários.
Nada disso, no entanto, reduz a qualidade da obra. São discussões paralelas, com certeza inflamadas pelo público brasileiro que, com razão, está animado e esperançoso com as chances de Ainda Estou Aqui. Óbvio que estamos todos torcendo para o filme de Walter Salles e para Fernanda Torres, mas temos de deixar o pachequismo de lado e reconhecer que se Emilia Pérez e Sofía Gascón vencerem não será nenhum absurdo.
Em 1999, Central do Brasil teve A Vida é Bela pela frente, e Fernanda Montenegro enfrentou Gwyneth Paltrow, Cate Blanchett, Meryl Streep e Emily Watson. Vinte e seis anos depois, Ainda Estou Aqui e Fernanda Torres vão encarar uma pedreira semelhante. A boa notícia é que, qualquer que seja o resultado, terá valido a pena. O caminho percorrido até o dia 2 de março inevitavelmente deixará um enorme legado para o cinema brasileiro.
Portanto, se você ainda não viu Emilia Pérez, não se contagie com as discussões das redes sociais. Vá correndo a uma sala escura e desfrute duas horas do mais puro suco de cinema. Fazer isso e aplaudir o trabalho de Sofía Gascón não significa que você é conivente com as declarações da atriz, e igualmente não desmerece o filme brasileiro. Emilia Pérez é imperdível.