O Brasil está em meio a uma importante transformação em seu setor de saneamento básico, impulsionada pelo recente Marco Legal que estabelece metas ambiciosas para a universalização dos serviços até 2033, com a possibilidade de extensão até 2040 em casos excepcionais. Mas, nestes três anos de Marco, o que mudou? Hoje, são mais de 100 milhões de pessoas sem coleta de esgoto e 30 milhões sem acesso a água tratada. Apenas uma em cada três pessoas tem esgoto tratado no país.
Os próximos nove anos serão cruciais para atingir a meta de universalização em 2033, o que irá demandar investimentos vultosos de governos e iniciativa privada e uma governança muito bem estruturada no setor. Segundo estimativas da Abcon, serão necessários mais de R$ 300 bilhões em investimentos somente nos próximos quatro anos.
Um dos ajustes de rota mais significativos é a crescente participação do setor privado, antes predominantemente liderado por empresas estatais. Leilões e parcerias público-privadas têm sido fundamentais para expandir o alcance e a eficiência dos serviços, direcionando investimentos substanciais para a modernização e expansão da infraestrutura.
Desde a aprovação do Marco, os novos contratos de concessão e parcerias público-privadas firmados já asseguram mais de R$ 64,6 bilhões de novos investimentos para expansão e modernização dos serviços. Com leilões recentes e a concretização da privatização da Sabesp, este volume de investimentos irá dobrar, atingindo cerca de R$ 130 bilhões.
Isso se traduz em iniciativas concretas, como a construção de novas estações de tratamento de água, esgoto e adutoras, resultando em melhorias palpáveis na qualidade e regularidade do abastecimento, especialmente em regiões historicamente desfavorecidas.
Entretanto, a transição para um modelo mais diversificado não está isenta de desafios. A regulação eficaz desse setor complexo é crucial para garantir o cumprimento dos contratos e o alcance das metas estabelecidas. Nesse contexto, o papel da Agência Nacional de Águas (ANA) e o fortalecimento das entidades reguladoras subnacionais são fundamentais para assegurar a qualidade e a sustentabilidade dos serviços prestados.
A sustentabilidade financeira do setor também é um ponto crucial e talvez seja o maior desafio. Modelos de tarifação que equilibrem a acessibilidade da população aos serviços com a necessidade de investimentos vultosos são necessários para manter a viabilidade econômica dos projetos de saneamento. A adoção de tarifas sociais para populações de baixa renda, aliada a uma gestão eficiente e transparente dos recursos, pode contribuir para a equidade no acesso aos serviços.
Entretanto, a reforma tributária, da forma como está posta no momento, ameaça gravemente o equilíbrio dos contratos e torna ainda mais tortuoso o atingimento das metas de universalização ao triplicar a carga de impostos para o setor de saneamento. É imprescindível que o Congresso Nacional, na regulamentação da reforma, corrija este equívoco e estenda ao setor o mesmo tratamento tributário dado ao setor de saúde, afinal, sem saneamento não há saúde.
No contexto de tornar nossas cidades mais resilientes às ameaças impostas pelas mudanças climáticas, a redução das perdas de água e a universalização da coleta e tratamento dos esgotos são imperativos urgentes, não apenas para preservar os recursos hídricos, mas também para mitigar os impactos dessas mudanças.
O compromisso do Brasil em reduzir suas perdas para 25% até 2033 demanda investimentos substanciais em infraestrutura, tecnologia e gestão eficiente. As perdas de água atualmente representam um desperdício significativo que compromete a eficácia dos serviços e exaure os recursos naturais, fazendo da sua mitigação uma prioridade estratégica.
As perdas de água representam 37,8% do volume captado dos nossos mananciais em 2022, segundo o Instituto Trata Brasil. A verdade é que não precisaremos captar mais água se conseguirmos reverter as perdas.
O saneamento inadequado tem consequências devastadoras para o meio ambiente e a saúde pública. Além da poluição dos corpos hídricos, a falta de tratamento adequado dos esgotos se reflete na saúde e na qualidade de vida da população. Comunidades sem acesso a serviços adequados de saneamento estão mais expostas a doenças transmitidas pela água e a condições de vida insalubres.
Dados do DataSUS de 2021 revelam que houve quase 130 mil hospitalizações em decorrência de doenças de veiculação hídrica, tendo uma incidência de 6,04 casos por 10 mil habitantes, o que gerou gastos ao país de cerca de R$ 55 milhões. No entanto, o Marco do Saneamento oferece uma oportunidade única para enfrentar esses problemas de frente e promover uma transformação significativa na qualidade de vida da população brasileira.
Para além dos desafios técnicos e operacionais, a implementação do novo Marco Legal também requer um esforço coordenado de educação e conscientização. A população precisa ser informada e engajada nos processos de melhoria do saneamento, entendendo a importância do uso responsável da água e da adesão às práticas de saneamento sustentável. Campanhas educativas e programas de capacitação são ferramentas essenciais para garantir o sucesso das políticas implementadas.
O Brasil está diante de uma jornada desafiadora, porém repleta de oportunidades. Com o comprometimento de todos os atores envolvidos – governos, empresas, sociedade civil – é possível superar os obstáculos e alcançar uma realidade onde o acesso universal aos serviços de saneamento básico seja uma realidade possível para todos os brasileiros. Essa transformação não apenas beneficiará a saúde e o meio ambiente, mas também contribuirá para o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida de toda a nação.
A implementação eficaz do Marco do Saneamento Básico é, portanto, uma questão de vontade política, investimentos bem direcionados e engajamento coletivo. Somente com uma abordagem integrada e colaborativa será possível alcançar as metas estabelecidas e transformar o setor de saneamento no Brasil, tornando-o um exemplo de sucesso para outras nações em desenvolvimento.
Marilene Ramos, diretora de Sustentabilidade e Relações Institucionais do Grupo Águas do Brasil, foi presidente do Inea e do Ibama.