Estratégia e ideologia do hegemonismo

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No plano militar e geopolítico a política norte-americana do destino manifesto alcançou seu desenvolvimento total e converteu-se numa justificativa de um hegemonismo necessário e ilustrado. O presidente George W. Bush vem produzindo um conjunto de declarações presidenciais que reuniu sob o título geral de “A Estratégia Nacional dos Estados Unidos”.
Este documento é uma expressão impressionante de um novo fundamentalismo que ameaça gravemente o futuro da humanidade se tomarmos em consideração o poder econômico e militar que manejam aqueles que o formularam. Mais grave ainda é constatar que estas idéias alcançam um profundo enraizamento social que tem apoiado as propostas do presidente depois do atentado de 11 de setembro de 2001.
A idéia central desta doutrina encontra-se seguramente na identificação dos Estados Unidos com os valores fundamentais salvadores da humanidade que se encontram em grande parte do documento mas especificamente na seguinte afirmação:
“A estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos se baseia num internacionalismo americano diferente que reflete a união de nossos valores e dos nossos interesses nacionais. O objetivo desta estratégia é ajudar a criar um mundo não somente justo mas também melhor. Nossas metas no caminho do progresso são claras: liberdade política e econômica, relações pacíficas com os outros Estados e respeito à dignidade humana. E este caminho não é somente americano, ele está aberto para todos”.
Entre estes valores universais, que se encarnam nos Estados Unidos, estão o livre comércio e a propriedade privada. Desta maneira se estabelece uma relação perversa entre o mundo e os Estados Unidos. Já que esta nação é a portadora dos ideais universais e seus empresários são a ponta de lança deles, qualquer restrição a estes ideais ou qualquer restrição aos interesses norte-americanos e aos dos representantes da livre iniciativa são a mesma coisa.
“A América deve defender firmemente as não negociáveis demandas de dignidade humana: o império da Lei; os limites ao poder absoluto do Estado; a liberdade de palavra; a liberdade de trabalho; a justiça equitativa; o respeito pela mulher, à tolerância religiosa e étnica e o respeito à propriedade privada”, afirma o presidente Bush em seu discurso de 1º de junho de 2002 em West Point.
Vejam bem leitores. Estes princípios são defendidos em  uma Academia Militar como parte da definição de uma estratégia militar. Isto quer dizer que se algum governo se recusa a implantá-los é passível de ação militar. Claro que estas declarações não podem corresponder à realidade. Todos sabemos que os principais aliados dos Estados Unidos no Oriente Médio, a começar pela Arábia Saudita e o Kuwait, não aceitam estes princípios, não são Estados laicos senão muçulmanos e portanto têm suas concepções próprias sobre o papel da mulher, sobre a noção de justiça, sobre a propriedade privada, sobre o poder do Estado etc.
Podemos citar dezenas de outros exemplos similares nas mais distintas regiões do mundo e em particular na América Latina que todos conhecemos muito bem.
Como prencher o abismo entre a perigosa doutrina de fundamentar as ações militares em princípios éticos associados a Estados e agentes econômicos e a realidade baseada em fatos totalmente opostos aos princípios invocados. Isto resulta  numa disfunção moral e ética extremamente desintegradora. Estamos no campo de ausência total de princípios para orientar as relações internacionais.
Em seu discurso de junho de 2002, pronunciado em West Point, o presidente Bush reforça suas preocupações não somente com o terrorismo (que passa a constituir um inimigo prioritário que não pode justificar-se por nenhuma razão) senão, sobretudo, por sua articulação possível com a alta tecnologia. Segundo ele:
“O perigo mais grave para a liberdade está na encruzilhada entre o radicalismo e a tecnologia. Quando a difusão das armas químicas, biológicas e nucleares em conjunto com a tecnologia da balística de mísseis ocorre, inclusive os Estados frágeis e os pequenos grupos podem alcançar  um poder catastrófico para atacar as grandes nações. Nossos inimigos têm declarado ter esta intenção e foram descobertos procurando estas terríveis armas. Querem a capacidade de nos chantagear ou de ferir-nos ou a nossos inimigos. Nós nos oporemos a eles com todo o nosso poder”.
Como podemos crer nestas afirmações quando o governo do Paquistão, fruto de golpe militar e claramente contrário aos direitos humanos, dispõe da bomba nuclear e é ajudado militarmente pelos Estados Unidos, que o converte em um parceiro privilegiado na Ásia Ocidental? Ao mesmo tempo em que promove claramente ações terroristas na Índia sem nenhuma restrição norte-americana séria.
Sabemos também que operam no território dos Estados Unidos os mais diversos grupos de terroristas, que têm acesso a armas ultra sofisticadas, cujo direito de livre venda é defendido ardorosamente pelo partido republicano do presidente Bush. Entre estes grupos tem um status especial, por seus vínculos com a inteligência norte-americana, os grupos anticastristas que operam ações terroristas a partir do território norte-americano. Não é aqui o lugar de fazer desfilar as expressões destas contradições entre os princípios enunciados e a prática da política externa da América do Norte.
Seria mais tranquilizador para o resto do mundo se uma visão mais pragmática e menos fundamentalista orientasse a geopolítica norte-americana. A afirmação, por exemplo, do princípio da tolerância entre as civilizações distintas que poderia substituir o princípio da autonomia das nações que Wilson colocou em vigor na Liga das Nações no final da Primeira Guerra Mundial. Isto poderia justificar mais abertamente a cumplicidade com os inimigos dos direitos humanos e com Estados de filosofia diferentes a respeito de vários aspectos.
Isto dificultaria também as justificativas inaceitáveis para a defesa de interesses restritos e locais em nome de princípios éticos universais. Isto deixaria mais claro, por exemplo, os interesses de levar adiante uma guerra contra o Iraque no maior centro petroleiro do mundo, em vez de recorrer a falsos argumentos éticos e principistas.
Isto não mudaria tão dramaticamente as contradições entre os interesses de um poder hegemônico que procura defender suas condições de dominação e o resto do mundo mas permitiria maior transparência nas relações internacionais. Neste momento se faz quase impossível o diálogo entre as nações e a implantação de condições de paz e cooperação no plano internacional.

Theotonio dos Santos
Professor titular da Universidade Federal Fluminense e coordenador da Cátedra e Rede Unesco – Universidade das Nações Unidas sobre Economia Global e Desenvolvimento Sustentável. Seu último livro é A Teoria da Dependência: Balanço e Perspectivas (Editora Civilização Brasileira).

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