Exclusão eleitoral

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É reconhecido que a configuração do sistema político de um país – fundado basicamente nos sistemas partidário e eleitoral adotados – pode ajudar ou prejudicar seu desenvolvimento econômico e social. Suas características são consideradas pelos investidores, na hora de tomar decisões empresariais. Logo, vale a pena discutir as falhas evidentes do sistema que exercitamos, no Brasil, e buscar corrigi-las com soluções adequadas e democráticas.
A falta de qualificação política de muitos eleitores, o grande número de partidos políticos registrados – excessivo em relação ao número de correntes político-filosóficas existentes – a baixa vinculação de certos representantes às regiões que os elegeram, a influência abusiva do poder econômico nas campanhas eleitorais são alguns dos fatores citados como causas de nossas mazelas políticas.
Para enfrentá-las foi constituída Comissão Especial do Senado, destinada a estudar a legislação eleitoral e partidária, bem como propor reformas com o objetivo de aperfeiçoar a polis brasileira. Seu relator, senador Sérgio Machado (PSDB-CE), após ouvir a Comissão, composta basicamente de aliados do presidente FHC, elaborou nada menos do que oito emendas constitucionais e três projetos de lei, alterando profundamente os princípios consagrados na Constituição de 88.
Não é que faltem, no conjunto de propostas, mudanças bem vindas como, por exemplo, a fidelidade partidária e a proibição de alianças e coligações nas eleições proporcionais. O que preocupa é o espírito geral, excludente, configurado nas duas medidas mais importantes previstas pelo relatório: o voto facultativo e o sistema eleitoral misto.
Felizmente, o voto facultativo não passará, porque a Comissão de Constituição e Justiça do Senado já lhe negou livre curso, por ferir cláusula pétrea da Lei Magna. Mas sua justificativa, no relatório, é a expressão suprema do espírito antidemocrático das reformas propostas. O relatório não esconde que quer facilitar a abstenção eleitoral das pessoas menos informadas, a quem desqualifica, negando o caráter democrático da aquisição de informação que o próprio ato de votar permite. A idéia é natimorta.
A outra proposta inadequada para o Brasil, mas que tem obtido apoio de quem se satisfaz com informações e aparências superficiais, é o sistema eleitoral misto, copiado da legislação alemã: para a Câmara Federal, cada estado mantém o atual número de cadeiras, sua bancada federal, com um mínimo de oito e um máximo de 70. A grande novidade é que o eleitor terá direito a dois votos para deputado!
Um destes votos será em um partido, como é hoje o voto de legenda. Cada partido apresentará uma lista fechada de candidatos, isto é, uma lista em que os candidatos estão enfileirados segundo uma ordem de prioridade para serem eleitos, de acordo com a escolha decidida em convenção partidária. Abandona-se assim o atual sistema de lista aberta, pelo qual o eleitor escolhe o nome do candidato partidário de sua preferência. O total de votos deste primeiro tipo, obtido pelo partido, determina o número de cadeiras a que terá direito na composição da bancada federal, e corresponderá à proporção que o partido conseguir no total geral de votos de lista do estado.
O segundo voto do mesmo eleitor é o distrital uninominal. Cada distrito elegerá um e apenas um representante, o mais votado obviamente. Estes deputados federais-distritais terão preferência na ocupação das cadeiras da bancada partidária, cujo número foi determinado proporcionalmente, tal como descrito acima.
Se o número de cadeiras conquistadas, proporcionalmente, pelo voto na lista partidária for maior que o número de eleitos nos distritos, o partido recorre aos nomes da lista, respeitada a hierarquia por esta definida, para complementar a bancada a que tem direito. Se, no entanto, for o inverso, todos os eleitos no distrito serão empossados e o número de cadeiras do partido será aumentado, mas ninguém da lista será chamado.
Como se vê, portanto, trata-se na essência de um voto distrital com modificações proporcionalizantes. Ou seja, o voto distrital misto é muito mais distrital do que misto. E o número total de cadeiras da Câmara não é fixo.
O chamado voto distrital misto nasceu quando as autoridades anglo-americanas de ocupação, após a 2ª Guerra, reconstitucionalizaram o que viria a ser a República Federal Alemã. Preocupado em não permitir o ressurgimento do partido nazista, o que seria possível com o voto proporcional, o comando aliado preferia implantar o sistema distrital puro, o mesmo adotado nos Estados Unidos e na Inglaterra.
Contudo, tal regra do jogo eleitoral tende a produzir um sistema bipartidário e havia que compor os interesses da Democracia Cristã e dos Social Democratas com as necessidades do Partido Liberal. Surgiu assim este híbrido que induziria a exigência de mais de dois partidos, mas coibiria o multipartidarismo. Funcionou…
Agora, no laboratório do Leste Europeu, área de influência da unificada e poderosa Alemanha, a experiência se espalha sem referência a sua origem e com outros propósitos. Bulgária, Hungria, Rússia o adotaram recentemente. Mas também é verdade que a maior parte das democracias na Europa Central e Oriental optaram por sistemas proporcionais.
Os efeitos do sistema distrital misto já são conhecidos e é isto que perseguem seus proponentes para o Brasil: reduzir o número de concorrentes, de candidatos e partidos, ou seja, reduzir a “oferta” política, oligopolizando-a, a despeito da imensa diversidade eleitoral que o Brasil democrático vem demonstrando desde os anos 80.
A idéia é sedutora para os políticos já eleitos e para os partidos consolidados. Reduz-se a concorrência e as possibilidades de surgimentos de novos atores. E para os eleitores? Será desejável diminuir suas alternativas de escolha? Será democrático fechar o foco eleitoral sobre três ou quatro partidos e seus candidatos tradicionais, forçando o cidadão a optar por um deles apesar de não ter qualquer identificação político-partidária com os mesmos? Democrático é respeitar a variedade da “demanda” dos eleitores.
Como se demonstrará em artigo seguinte, o voto distrital misto tem sérias implicações para a representação política, que decerto restringe. Para os problemas que se propõe resolver com sua instituição (existência de partidos sem representação real, verdadeiras legendas de aluguel, falta de convergência parlamentar etc.) há outras soluções, mais adequadas e democráticas. Conjugado com o voto facultativo revela, no caso brasileiro, intenções excludentes, no mesmo sentido de certas reformas econômicas.

Luiz A. Salomão
Vice-líder do PDT na Câmara dos Deputados e diretor da Escola de Governo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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