Facilidades e dificuldades

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Não sou defensor dos pobres e oprimidos, nem imagino de onde foi tirada essa ideia. Só tô vendo a realidade como ela não é mostrada, por estar vivendo exposto há quarenta anos, sem seguro, sem plano de saúde, sem salário, sem emprego – e trabalhando muito, sem férias nem feriados, amarradão, gosto muito do meu trabalho – sem garantias a não ser a da morte e a da perseguição da sociedade que, sem ter conseguido me enquadrar, sempre tentou me impedir de expor as coisas que faço – e algumas vezes tomou tudo o que eu tinha, me roubando o sustento da minha família e quase me levando ao crime.

Nessas horas sempre aparecia um “acaso” ou “coincidência”, alguma “casualidade” pra me aliviar a revolta e dissuadir a disposição de delinquir. As tentações são muitas, e o Estado empurra a gente pro crime. Heróis são os que não se tornam criminosos.

Só tô vendo claro que os mais pobres são muito mais fortes do que as classes mais protegidas. Não por evolução espiritual, não por alguma genética ou superioridade, mas pela prática diária, cotidiana, superando dificuldades que as classes médias e altas não têm.

 

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Os mais pobres são muito mais fortes

do que as classes mais protegidas

 

Por isso mesmo a maioria é roubada nos seus direitos humanos, constitucionais, sabotada na educação e na informação pra que não se tome consciência da própria força e da própria importância na existência da sociedade como um todo. E se deixe explorar, enganar, conduzir, escravizar, manipular, convencida de uma inferioridade falsa e conformadora pelo modelo de educação, pelo massacre midiático-publicitário, pela prática social cotidiana. A fortaleza passa despercebida. Ainda.

Facilidades geram fragilidade e medo. Dificuldades geram capacidade de superação e resistência. Não é difícil entender. As pessoas mais protegidas, que têm seus direitos respeitados – e mais ainda os que têm regalias e privilégios – são mais frágeis, menos capazes diante das dificuldades, não enfrentam e superam os problemas que a maioria precisa encarar, têm sempre funcionários pra resolver os piores problemas. Os menos protegidos, os roubados nos seus direitos humanos, constitucionais, acabam se tornando mais fortes, por serem obrigados a superar dificuldades cotidianas.

Há pais que não levam em conta estarem formando os adultos de amanhã. Quem educa seus filhos satisfazendo suas vontades e protegendo em excesso não os prepara pra encarar as dificuldades da vida, ao contrário – cria bundamoles sem capacidade de superação, sem resistência aos tombos e topadas da vida. Os adultos de hoje já dão uma ideia do que resulta da formação consumista, chantagista, subornadora e interesseira. É só olhar em volta o comportamento geral. Com louváveis e comoventes exceções, sempre. A humanidade é um garimpo. Ainda.

Diferente da preciosidade mineral, a preciosidade humana contamina, as exceções se multiplicam, dão seu jeito, arrumam formas de viver além dos valores convencionais, soluções pros problemas estrategicamente criados pra dificultar autonomia, justiça, solidariedade, as qualidades sociais que resultarão em harmonia. Os podres de ricos não admitem justiça, vivem do sofrimento das multidões. Estas, as multidões, ao tomarem consciência de si, da sua força e resistência, não precisarão nem pensar em derrubar os opressores – eles cairão sozinhos, porque são sustentados pelas multidões inconscientes.

Eduardo Marinho

Artista de rua e escritor, mantém o site observareabsorver.blogspot.com

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