A farsa econômica, o retrocesso civilizatório e onde fica a saída?

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Sede do Banco Central em Brasília (Foto: Lucio Tavora/ Ag. Xinhua)
Sede do Banco Central em Brasília (Foto: Lucio Tavora/ Ag. Xinhua)

A ideologia do capital financeiro e suas consequências no Brasil

 

O Monitor Mercantil, na edição de 18/5/2023, informa que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, comemorou a aprovação do regime de urgência para a votação do “novo arcabouço fiscal” na Câmara dos Deputados e “assegurou que as despesas do governo vão crescer menos do que a metade do aumento da receita em 2024”. E, comentando as mudanças feitas pelo relator da proposta, disse que o Executivo “não tem como” gastar R$ 80 bilhões, acima do previsto inicialmente.

Fazendo coro ao ex-governador mineiro Francelino Pereira (1921-2017) pergunto: que país é esse para o qual trabalha o ministro Haddad? Como um país de miséria social, de fome, de desemprego, de enorme população de rua como o Brasil, com educação precária e professores maus pagos “não tem como gastar” não apenas R$ 80 bilhões, mas 10, 20, 100 vezes esta quantia?

A resposta está na ideologia que comanda o ministro e o governo desde a denominada redemocratização, ou ainda antes, durante a presidência do general João Baptista Figueiredo (1918-1999), que privilegia o capital financeiro em detrimento de todos outros capitais e, principalmente, de despesas com o trabalho.

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Não faço acusação vã, como o prezado leitor verá no desenvolvimento deste artigo.

Vamos ao início do século 20. O Brasil ainda vivia com os princípios e os poderes que dominaram no Império, ou seja, a predominância do capital financeiro inglês e a sociedade bastante fechada à mobilidade social. Lembrar que 1900 estava separado apenas por 12 anos da escravidão formal, legal, que desde 1500 existira no Brasil.

Esta sociedade, nada permeável, não tinha despesas com o atendimento social, pois, no dizer de um dos presidentes da Primeira República, “a questão social é caso de polícia”.

Este absurdo repetia o Regimento de 17 de dezembro de 1548, que Dom João III entregara a Tomé de Souza para criar em nosso país a primeira estrutura de governo: o governo ou direção geral, o braço armado da defesa do território, o provedor-mor para as finanças e o ouvidor-mor para manter a ordem, evitar as revoltas internas. E para tudo mais, principalmente a domesticação, ou seja, a doutrinação dos habitantes, fossem emigrantes ou gentios, haveria a Companhia de Jesus, a ordem dos jesuítas, um monopólio privado que durou até 1759, mais de dois séculos.

Toda nossa história foi da precedência das finanças sobre todos demais atores econômicos, fossem a indústria, o comércio e, especialmente, o trabalho. Daí não encontrarmos, a não ser pela exceção que confirma a regra, mais do que um Colégio Pedro II ou uma escola militar, um hospital público ou um posto de vacinação.

As finanças levavam à falência as iniciativas de empreendedores brasileiros, quando não à própria morte, como o cearense Delmiro Gouveia (1863-1917), construtor da primeira usina hidrelétrica do Nordeste.

Em 1930 ocorre uma Revolução vitoriosa, várias haviam tentado mudar esta situação do País, mas a de 1930 foi a que teve sucesso, e nos proporcionou 50 anos de independência e progresso, que é conhecida como a Era Vargas.

A Era Vargas sempre foi combatida, até por dentro, por aqueles que usufruíam das condições de trabalho que ela proporcionava, e não se diga que era de direita ou de esquerda, pois comunistas e fascistas, conservadores e revolucionários estiveram contra Getúlio Vargas e os seguidores do nacional trabalhismo, um pensamento brasileiro que orientou seus governos e de alguns de seus sucessores.

A Era Vargas, cujos benefícios ainda nos protegem hoje, malgrado toda a luta para destruí-la desde 1985, é que mantém a justiça do trabalho, a saúde pública, a Petrobrás e as empresas nacionais brasileiras, na indústria, no comércio e nos serviços. Sem ela seríamos apenas uma colônia dirigida por capitais estrangeiros.

E, pior ainda, de capitais financeiros apátridas, residentes nos 84 paraísos fiscais existentes no mundo, que vão de um bairro, como a “City” londrina, a um Estado nos Estados Unidos da América (EUA), como “Delaware” do presidente Biden, colônias, como as “Ilhas Cayman”, do Reino Unido, “Curaçao”, dos Países Baixos, “Ilhas Saint-Pierre et Miquelon”, da França, ou de países como “Mônaco”, “Luxemburgo” ou os “Emirados Árabes Unidos”.

O século 20 é a história da luta do capital financeiro contra o capital industrial. Esta foi a verdadeira batalha. Dentro do capital industrial lutavam o poder do capital e o poder do trabalho, o que sem dúvida o enfraquecia. Porém o capital financeiro se insinuava dentro de governos, em princípio dirigidos pelo industrialismo, como dos EUA, e os enfraquecia na luta contra o poder do trabalho, que sua máquina de “fake news”, denominava “comunistas”, quando muitas vezes eram apenas independentistas das várias formas coloniais de dominação.

E isso se comprova por não haver um único ano, de 1946, fim da II Grande Guerra, até 2023, sem que esteja ocorrendo, mais de uma guerra no mundo, e, em todas elas os EUA estejam presentes, com suas forças armadas, com sua espionagem, com a CIA, a NSA, ou outros de seus organismos para golpes, insurreições e chantagem.

As finanças hoje dominam praticamente todos os governos do “mundo ocidental”, onde se insere o Brasil. E tem como seu principal inimigo o mundo multipolar, que vem obtendo imenso crescimento, já nele inseridos, em 2021, 140 países na Iniciativa do Cinturão e Rota (Belt Road Initiative, BRI, da designação em inglês), com ativa participação da República Popular da China (RPCh).

 

As opções brasileiras

Devemos, em primeiro lugar, conhecer o Brasil. As comunicações de massa, quer as tradicionais quer as virtuais de hoje, sempre procuraram desmerecer os sucessos brasileiros, quando não era possível escondê-los. Criava-se assim o clima propício à invasão cultural colonizadora. O que denominamos “pedagogia colonial” é todo este sistema que desde os jesuítas, no século 16, até o “Facebook”, no século 21, ora explícito ora implicitamente, lhe faz, caro leitor, sentir-se incapaz, aceitar ser ignorante, ou não encontrar reservas morais e intelectuais para enfrentar as dificuldades.

A expansão comercial chinesa levou também, como ocorreu no passado com a França, a Inglaterra e os EUA, à expansão cultural. Passamos a conhecer outra realidade intelectual, ainda mais antiga do que a judaico-cristã, que no dizer da sinóloga francesa Anne Cheng (1955) “fez a aposta no homem”: o taoísmo e o confucionismo.

Vamos inicialmente verificar as diferenças destes pensamentos. O judaico-cristão tira do homem a condução de seu destino, colocando numa transcendência indemonstrável toda sua origem e fim. Veja no Regimento de Dom João III, que exigia de Tomé de Sousa o povoamento das terras “para propagar a fé católica”. E, sob diversas formas isso se repetiu pelos séculos. Uma única Constituição brasileira, a de 1934, não teve início sob “as bênçãos ou proteção de Deus”.

No pensamento de quase a totalidade dos chineses e de outros povos orientais, é o homem quem edifica sua vida. Duas palavras – “tao” e “te” – sintetizam o pensamento de Lao Tze e Confúcio. “Tao” é o caminho, ou seja, a vida que vai agregando conhecimentos e que, em última análise, constrói a soma das verdades. “Te” é a virtude, a moral que existe em cada um, que guia sua busca da verdade. Se o caminho (“tao”) resulta no conhecimento da verdade, o “céu” é o de cada um, e uma consequência do “te”, da virtude.

Vê-se, assim, que algumas condições na formação da compreensão que se tem da vida podem ser criticadas. Porém o mais importante é colocar em dúvida as “verdades” impostas na doutrinação colonizadora.

Logo, todo o “fake” do sistema de doutrinação pré-escolar, escolar em todos os níveis, e do sistema de comunicação geral, é passado por uma peneira até agora inexistente, da perspectiva diferente da existência.

Mais importante ainda é que conheceremos, finalmente, a realidade do Brasil; um país senão o mais rico, dos mais ricos do mundo, detentor de reservas minerais para todo desenvolvimento tecnológico, capaz de alimentar, a custos muito baixos, toda população, quer pela abundância de terras férteis e de energia, quer pelos rios e aquíferos garantido a indispensável água. O Brasil é autossuficiente em tudo, só lhe falta governo nacionalista e que tenha optado pelo trabalho, não pelo capital financeiro, como ocorre desde 1985.

Entrar para o BRI, como recentemente fez a Argentina, é criar uma opção às imposições do Atlântico Norte, colonizadores cruéis desde o fim do Renascimento, um fenômeno europeu, e com a saída para o Novo Mundo.

É o que o Brasil precisa para ganhar soberania: não ficar preso a um poder, a uma ideologia, principalmente quando estes são barcos afundando. Podemos e devemos ser soberanos, defendermos o uso de nossa riqueza para o benefício da população brasileira.

Frequentemente, nas páginas do Monitor Mercantil, para ficarmos no jornal que mencionamos no início deste artigo, constatamos que a dívida estadunidense fica, a cada dia, mais insolvente, que seus ativos perdem valor, como sua moeda, e está sendo criado um clima social naquele País que pode leva-lo à segunda guerra civil, de resultado imprevisível. E arrastará, pela ignorância que se difundiu pela outrora culta Europa, o continente que já foi dos colonizadores do mundo, como se constata nos idiomas oficiais falados nas Américas, na África, em países da Ásia e por toda Oceania: Austrália, Fiji, Ilhas Cook, Ilhas Marshall, Ilhas Salomão, Kiribati, Micronésia, Nauru, Niue, Nova Zelândia, Palau, Papua-Nova Guiné, Samoa, Tonga, Tuvalu e Vanuatu.

Em 1994, o professor José Walter Bautista Vidal, o primeiro secretário de Ciência e Tecnologia do Brasil, no Estado da Bahia, em Painel na Escola Superior de Guerra (ESG), sobre “Alternativas Energéticas Nacionais”, falou:

“No limiar de novo milênio e da Terceira Revolução Industrial, o Brasil não pode perder, como o está fazendo, o seu momento histórico, em correspondência com legítimas aspirações de seu povo. Lamentavelmente as classes dirigentes não têm correspondido ao que delas se espera. Em analogia com o que aconteceu na Primeira Revolução Industrial, da qual fomos excluídos devido ao Tratado de Methuem (1807), que Portugal assinou com a Inglaterra, ou a Segunda, da qual também fomos excluídos pelo Tratado de Bretton Woods (1944) e pelo modelo econômico do crescimento dependente (1955), corremos agora o gravíssimo risco de sermos excluídos da Terceira Revolução Industrial por acordos e tratados que estão sendo impostos pelas nações atualmente hegemônicas, especialmente os EUA, que visam superar, às nossas custas, a tendência evidente à decadência. Isso configura-se de modo agregado no chamado Consenso de Washington”.

 

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado, ex-membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra (ESG), atual presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (Aepet).