Fraude, ‘ma non troppo’

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Lá pelos idos de 1992, o agora extinto Ministério do Trabalho, preocupado com o alto índice de rescisões fajutas dos contratos de trabalho simuladas entre os empregados e as empresas apenas para que os trabalhadores pudessem sacar os depósitos do FGTS, editou a Portaria 384, que declarava fraudulenta, e sem nenhum efeito, a recontratação do empregado nos 90 dias que se seguissem à rescisão do contrato de trabalho, sem justa causa. Essa portaria está até hoje em vigor.

A tramoia era feita assim: o empregado pedia demissão do emprego, mas combinava com o patrão que seria dispensado sem justa causa. Como a dispensa sem justa causa obrigava o patrão a pagar uma multa de 40% sobre tudo o que estivesse depositado na conta do FGTS, a empresa incluía essa multa de mentirinha no termo de rescisão e, aparentemente, estava tudo bem. O sindicato ou a Delegacia Regional do Trabalho homologavam a rescisão do contrato de trabalho se o empregado tivesse mais de ano de casa, o empregado sacava o FGTS e devolvia os 40% da multa à empresa.

Nenhum dos dois perdia: o empregado embolsava uma graninha, e a empresa economizava os 40% da multa do FGTS. Com isso, um pedido de demissão que não permitia o saque do FGTS virava dispensa sem justa causa, o empregado sacava o FGTS, devolvia os 40% para o patrão e no dia seguinte era readmitido na própria empresa e começava outro contrato de trabalho. Quando o governo percebeu a fraude, editou a portaria que declarava a recontratação uma fraude, e as empresas pararam de se arriscar fazendo isso.

Recentemente, a Secretaria Especial da Previdência e Trabalho do Governo Bolsonaro publicou a Portaria 16.655 de 2020, em sentido diametralmente oposto. Para aumentar os postos de trabalho, essa portaria permitiu às empresas recontratarem empregados dentro de 90 dias após a rescisão do contrato de trabalho, mas apenas durante o “estado de calamidade pública” declarado pelo Decreto 6 de 2020, isto é, de 20 de março a 31 de dezembro de 2020. A portaria é expressa ao dizer que a recontratação em até 90 dias contados da rescisão do contrato de trabalho não é fraudulenta.

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As empresas que dispensaram empregados durante a pandemia e pretendem recontratá-los devem ficar atentas a alguns aspectos. O primeiro deles é que a Portaria 384/1992 continua valendo. A nova Portaria (16.655/20) apenas flexibilizou provisoriamente a restrição da antiga (384) durante a pandemia. Uma vez declarada a cessação do estado de calamidade pública, a Portaria 384/92 volta a viger e, a partir daí, toda contratação feita nos 90 dias contados da rescisão dos contratos de trabalho será fraudulenta e não gerará nenhum efeito, exceto multas administrativas contra as empresas.

Outro aspecto importante a ser observado é que se a empresa quiser fazer a recontratação diretamente com o empregado poderá fazê-lo, desde que mantenha os salários e as vantagens que esse empregado tinha no momento da dispensa. Nada poderá ser alterado para pior. Se a intenção da empresa for pagar salário menor que aquele que o empregado tinha, ou mexer em algum dos seus direitos como férias, banco de horas, PLR, plano de saúde etc., a recontratação em valores e direitos menores que os recebidos anteriormente somente será possível com autorização do sindicato da categoria profissional por meio de acordo ou convenção coletiva. A contratação direta é nula.

Algumas empresas estão em dúvida se podem recontratar o antigo empregado por meio de contrato de experiência. Em regra, o contrato de experiência pode ser assinado com o empregado qualquer que seja a experiência que ele tenha na função porque esse tipo de contrato, também chamado “contrato de prova”, serve tanto para apurar as condições técnicas do empregado para o exercício da profissão como para avaliar o seu perfil como pessoa. Nos casos de recontratação, contudo, a maioria dos doutrinadores entende que a empresa não pode recontratar um antigo empregado por meio de contrato de experiência porque esse tipo de contrato dá pouca proteção ao trabalhador, e a sua indenização em caso de rescisão é menor. Com isso, os estudiosos temem que a empresa possa usar contratos de experiência apenas para criar uma massa de manobra fácil de dispensar, e muito mais barata.

Por isso, a tendência é não aceitar a recontratação por meio de contrato de experiência, embora a portaria não cuide disso. O perigo de uma recontratação por meio de contrato de experiência é a fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego entender que há fraude, ou o próprio empregado discutir a lisura dessa contratação num processo trabalhista. Se a Justiça do Trabalho entender que é fraude, poderá anular a recontratação e declarar unicidade contratual, condenando a empresa a pagar salários e vantagens de todo o período.

Enfim, é preciso ter cuidado nessas recontratações e ser muito honesto. A portaria é inclusiva e cheia de boas intenções. Não é hora de tirar proveito dela à custa do trabalhador que, dispensado no meio de uma tempestade, vê, com bons olhos, uma luz do fim do túnel.

 

Mônica Gusmão é professora de Direito Empresarial, do Consumidor e do Trabalho.

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