Por Gilmara Santos, especial para o Monitor
Grandes consumidores estão conseguindo na Justiça manter os contratos de fornecimento de água com descontos pela Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo). Os benefícios, destinados a grandes consumidores como hospitais, museus e estabelecimentos comerciais, foram revisados após a privatização do serviço. A Sabesp começou a informar esses clientes sobre a interrupção dos contratos.
Os descontos, estimados em R$ 800 milhões anuais, não são integralmente aceitos pela Arsesp (Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo), resultando em uma perda de receita para a empresa, conhecida no mercado como “gap” regulatório. Com isso, o reajuste na tarifa de água pode chegar até 200%. A estimativa é que ao menos quatro empresas obtiveram decisões liminares na Justiça que obrigam a Sabesp a manter contratos de fornecimento de água com descontos.
“Nesse caso, as empresas estão sendo afetadas de modo negativo, pois não houve uma tentativa de entrar em um acordo que fosse benéfico para ambos os lados. A Sabesp apenas apresentou uma notificação e espera que as empresas arquem com um valor bem mais caro”, diz Mayra Sampaio, advogada especialista em Direito do Consumidor e sócia do Mayra Sampaio Advocacia e Consultoria Jurídica.
A advogada Daniela Poli Vlavianos, sócia do escritório Poli Advogados e Associados, explica que está sendo discutida a validade dos contratos de fornecimento de água com descontos celebrados entre a Sabesp e grandes consumidores, como hospitais, museus e estabelecimentos comerciais.
“Os grandes consumidores têm direito à manutenção das condições contratuais originalmente pactuadas, especialmente se os contratos estiverem em vigor e não houver previsão legal ou regulamentar para alterações unilaterais. Além disso, o princípio da proteção da confiança legítima é um aspecto relevante, considerando que as empresas planejaram seus custos com base nos contratos previamente firmados”, afirma Daniela.
Ela acrescenta: “O Código Civil (art. 421) e a Lei de Concessões (Lei 8.987/1995) garantem o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos, o que pode ser invocado por esses consumidores. Ainda, decisões judiciais podem assegurar a continuidade dos descontos enquanto a questão é discutida judicialmente, resguardando os direitos dos consumidores contra aumentos abruptos e não previstos.”
Manutenção da liminar
“A manutenção ou não da liminar é de difícil confirmação neste momento. A notícia de terem havido quatro liminares concedidas (sendo que uma delas foi obtida no Tribunal de Justiça e não em primeira instância) pode significar que uma minoria das ações movidas tem tido um êxito inicial. De toda forma, para que não haja um desequilíbrio tão grande de controle interno para a Sabesp – no sentido de uma parte obter o desconto e outra não obter – a maior tendência é que haja uma unificação das decisões a partir do Tribunal de Justiça para maior segurança jurídica”, diz o advogado Leonardo Prado-Ribeiro, sócio do Prado Ribeiro Advogados.
Para ele, um fundamento possível para a manutenção da liminar é o descumprimento da lei que autorizou a venda do controle da companhia, vez que as reduções tarifárias são previstas no texto legal. Importante lembrar, também, que a intervenção do Judiciário em contratos privados é bastante comum e serve, justamente, para evitar ou compensar desequilíbrios.
O advogado Paulo Akiyama, especializado em direito do consumidor, explica que a continuidade das liminares depende de várias considerações:
• Força dos contratos: contratos bem redigidos com cláusulas claras de manutenção de benefícios têm mais chances de serem defendidos judicialmente.
• Interpretação dos juízes: os juízes podem considerar a importância estratégica e econômica dos contratos para as empresas envolvidas e o impacto de uma mudança abrupta nas tarifas.
• Argumentos da Sabesp: a empresa pode argumentar sobre a necessidade de revisão dos contratos devido a mudanças no cenário econômico e regulatório após a privatização.
Impacto
A advogada Aline de Oliveira, especialista em direito do consumidor, avalia que o impacto imediato para grandes empresas foi significativo, uma vez que o aumento das tarifas poderia chegar, em alguns casos, a até 200% do valor atualmente pago.
“Isso gerou um intenso debate sobre a necessidade de manutenção desses descontos, além de diversas ações judiciais buscando liminares para garantir a continuidade da política pública e a manutenção dos contratos”, diz Aline.
Ela destaca que a medida afeta diretamente uma série de empresários e setores produtivos de maneira instantânea. “A principal reclamação quanto à alteração na política de descontos refere-se ao efeito imediato da decisão, pois não houve um período de transição que permitisse às empresas – e seus gestores – elaborar um plano gradativo para adaptar as novas tarifas aos orçamentos mensais.”
Sob a perspectiva jurídica, duas questões centrais merecem destaque, em especial, a natureza jurídica que abrange os contratos que foram firmados pelos consumidores, estes de grande porte, perfazendo os contratos de demanda firme, bem como a questão de direito público que disciplinou a relação dos licitantes aos termos do certame relacionado ao processo licitatório para privatização da Sabesp.
“De maneira simples, em que pese a natureza jurídica que disciplina a gestão do fornecimento do serviço de abastecimento de água e tratamento de esgoto visando o atendimento das premissas licitatórias objetivadas com o processo de privatização, há que se mencionar que o objetivo principal, ou seja, o motivo para o qual a empresa Sabesp existe, sua a função social, logo, fornecimento de serviços básicos e essenciais para consumidores finais, tem, principalmente, sua relação disciplinada pelas normas consumeristas.”
“Além dos aspectos contratuais e regulatórios, é importante considerar que o aumento abrupto das tarifas, caso confirmado, pode gerar impactos sociais e econômicos amplos, especialmente para os setores essenciais como saúde e educação. Os clientes devem monitorar as ações da Arsesp e, se necessário, questionar a legitimidade das alterações tarifárias nos âmbitos judicial e administrativo”, recomenda Daniela.
“Também é possível que o tema ganhe destaque em ações coletivas, dado o impacto generalizado da questão. Por fim, é relevante discutir se a revisão unilateral dos contratos pela Sabesp está alinhada com os princípios constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade, que devem reger as relações contratuais no âmbito público e privado”, comenta a advogada.
“A atividade da Sabesp, mesmo após o controle da companhia deixar de ser estatal, é de interesse público e regulada pelo Estado. Portanto, a justificativa de que se trata de uma empresa privada e, em razão disso, não necessitaria conceder descontos ou ‘fazer política pública’ não se sustenta. Tanto é assim que a companhia continua (e continuará) mantendo a Tarifa Social para população de renda mais baixa”, diz Prado-Ribeiro.
“É importante ter noção do imenso impacto gerado pelo serviço de saneamento básico, abastecimento de água e tratamento de esgoto. Sobretudo no Estado de São Paulo – com cerca de 21% da população brasileira – o interesse público deste serviço deve se sobrepor ao interesse privado da companhia que, sendo lucrativa, não terá prejuízo em manter os descontos contratados. Nesse ponto, entra o papel da agência reguladora e do próprio Estado de São Paulo, seja pelo Executivo ou Legislativo, antes de haver a necessidade de intervenção do Judiciário”, finaliza Prado-Ribeiro.