Segundo a Constituição brasileira, é necessário que a atividade produtiva esteja calcada na solidariedade econômica e na dignidade da pessoa humana. Atualmente, não importa simplesmente considerar se determinada posse ou propriedade é produtiva, mas também se é objeto de relações sociais mais equitativas, cujo resultado seja vantajoso para a coletividade, por meio da preservação dos recursos naturais e da valorização do trabalho humano.
Mas, apesar dos avanços, “grileiros” — que são pessoas divorciadas do conceito atual de propriedade privada — continuam agindo em diversas regiões, a exemplo da Amazônia, como se fossem legítimos donos de terras públicas, legitimando a posse e eliminando, com o uso da força, a resistência das comunidades tradicionais. A grilagem, como assevera Eliane Brum (in Banzeiro Òkòtó: uma viagem à Amazônia centro do mundo), é estrutural no Brasil. Os conceitos de grilagem e propriedade privada estão conectados, pois está na origem do latifúndio brasileiro e continua, no presente, o saqueio de terras na Amazônia pela apropriação ilícita.
As queimadas e desmatamentos em nossa floresta muitas vezes denunciam uma nova área que está sendo saqueada de forma orquestrada pelos denominados “donos da terra”, que rapidamente transformam a floresta em pasto ou acabam extraindo árvores nobres dentro das áreas de proteção. O Estado não consegue exercer fiscalização eficaz e, assim, a nossa maior floresta vai minguando pouco a pouco, por meio de incêndios propositais e extração ilegal de madeira e outras riquezas.
A desordem na ocupação do solo em áreas da Amazônia acarreta também uma desordem socioambiental, sem vocação para a sustentabilidade, impactando os povos indígenas e populações tradicionais que lá habitam e que retiram seu sustento da floresta. Importa, muitas vezes, em afastar o indígena, os ribeirinhos e quilombolas de suas terras, transformando-os em pobres em cidades mais próximas, como Altamira, no Pará.
Eliane Brum relata que, mesmo inseridos em políticas públicas governamentais, aqueles que migram da floresta para as cidades adentram num mundo de consumo e desejos: “… assim, aqueles que existiam em outros termos, na floresta e pela floresta, passaram a experimentar uma renda mensal.”
A resposta mais emblemática ao desmatamento e à ocupação da floresta por grileiros, garimpeiros ilegais e à legalização de terras públicas em propriedades privadas para exploração de gado e madeira, além de atividades econômicas e programas de governo que são levados a termo sem a participação dos povos e populações tradicionais, é a pobreza, a fome e as doenças advindas da migração desses povos para as cidades, pela perda de seu habitat natural.
A grilagem saqueia a Amazônia por dentro sem que ninguém perceba: “… quando se sobrevoa a Floresta Amazônica de monomotor, os clarões de desmate total, o que no jargão técnico se chama ‘corte raso’, são fáceis de ver. E horrendos. Mas muito da floresta que se vê de cima e parece conservada não é mais floresta, apenas carcaça de floresta. Por baixo, ela já foi toda arrancada ou arrasada…” (ob. cit., p. 166).
“… na prática, mesmo em áreas de proteção ou de assentamento agrário, os grileiros continuaram agindo como se fossem os legítimos donos, com territórios delimitados e assegurados pela força…” “Quem paga a comissão para o dono da terra e se responsabiliza pela extração da madeira é o ‘extrator’ — ou ‘gato’. Esse personagem comanda várias equipes para o abate da madeira, mas é apenas um empregado no esquema criminoso. Quem se opõe à operação e a denuncia passa a ser jurado de morte. Se nem assim a pessoa se cala, só há dois caminhos: ou será incluída em um programa institucional de proteção ou passa de marcado para morrer a morto.” (ob. cit., p. 166).
Muitos foram mortos denunciando a ocupação ilegal na Amazônia, e esta permaneceu sem a fiscalização adequada, a fim de poupar outras vidas. A criação de reservas extrativistas tem ajudado a mostrar que a Amazônia é uma vitória de resistência dos “povos-floresta”, mas, enquanto nos concentramos naquela imensidão verde, milhares de árvores são abatidas e hectares queimados, mesmo em áreas de conservação.
Agimos em favor da grilagem enquanto desconhecemos um futuro capaz de intervir no presente ou enquanto não compartilharmos da resistência dos povos-floresta na preservação da Amazônia. Temos muito a oferecer, e as contribuições estão sendo demandadas para a COP30 por várias frentes. Planos de reflorestamento, regularização fundiária, combate a incêndios florestais e às mudanças climáticas, preservação ambiental, monitoramento, educação ambiental e aproveitamento econômico sustentável da floresta — tudo isso já está sendo posto em prática pelo Governo Federal, que ainda tem que lutar pela adaptação e maior resiliência das populações e povos-floresta decorrentes das mudanças climáticas.
A COP30, a ser realizada em Belém do Pará, no final do ano, é um chamado à colaboração de todos, mas também um anúncio de que não apenas os entes estatais, mas cada um de nós deve estar atento para entender que a Constituição de 1988 assegurou a todos o direito ao meio ambiente saudável e que não se pode abrir mão da Floresta Amazônica ou de qualquer outro bioma para atividades ilegais ou outras que não correspondam aos fins constitucionais.