Há excesso de energia elétrica no Brasil?

Segundo Adriano Pires, o atual modelo do setor elétrico está levando a falsa sensação de que está havendo um excesso de energia elétrica no Brasil.

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Adriano Pires (Foto: divulgação)
Adriano Pires (foto divulgação CBIE)

Conversamos com Adriano Pires, diretor do CBIE (Centro Brasileiro de Infraestrutura), sobre a questão de que se há ou não excesso de energia elétrica no Brasil. Essa conversa tem como referência o PAR/PEL 2023, Ciclo 2024-2028, feito pela ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), que trouxe as informações de que em 2024 o Brasil teria uma demanda de 101 GW para uma capacidade instalada de 229,6 GW, e que em 2027 o país teria uma demanda de 110,9 GW para uma capacidade instalada de 246,8 GW (páginas 8 e 10).

Há excesso de energia elétrica no Brasil?

Se você olhar os números de megawatts, você até teria uma sobra de energia no Brasil, mas no mundo real essa sobra não existe. Isso porque energia é um produto que se consome 24 horas por dia, mas com maior e com menor intensidade. Além disso, cada energia tem um atributo, ou seja, cada energia é diferente da outra.

Esses atributos precisam ser olhados, e não só os preços, mas é isso que o planejamento energético brasileiro não tem feito. Isso fez com que tivéssemos uma explosão de investimentos na geração eólica e solar, que dão essa falsa impressão de que está sobrando energia, mas sem um planejamento mínimo, já que essas gerações não têm o atributo de dar segurança energética ao sistema. Os atributos da eólica e da solar é muito mais ambiental.

Em horários de pico, quando o Sol vai embora, ou está ventando menos ou temos menos água nos reservatórios, nós acabamos tendo que ligar as térmicas para atender a demanda de energia e evitar um apagão. Na realidade, nos últimos anos o Brasil construiu uma matriz elétrica muito preocupado com a questão do meio ambiente e pouco preocupado com a questão da segurança energética. O que está faltando é termos um planejamento que reúna três atributos: sustentabilidade, segurança energética e acessibilidade à energia, já que a energia no Brasil é muito cara, principalmente para o consumidor cativo, como a Dona Maria e o Seu José. Se isso não for consertado, nós não conseguiremos atender esses três requisitos.

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Isso porque quando temos um problema hidrológico, e parece que neste ano nós estamos tendo um pouco outra vez, sendo que a última vez que tivemos foi em 2021, nós entramos numa situação em que temos que ligar as térmicas caras que fazem o preço da energia subir. Se nós tivéssemos um planejamento onde colocássemos um pouco de térmica o tempo todo na base do sistema, as térmicas poderiam fazer o papel de permitir um melhor gerenciamento dos reservatórios das hidrelétricas e de ser uma espécie de bateria para energia solar e eólica, ao mesmo tempo em que evitaria a volatilidade de preço que temos no Brasil. Contudo, nós esperamos o reservatório ficar quase sem água e ligamos as térmicas de uma vez, independente de serem caras ou baratas, o que gera um pico no PLD (Preço de Liquidação de Diferenças), que pode sair de R$ 60, R$ 70, R$ 80, para até R$ 500, R$ 600, às vezes.

Vai haver excesso de energia elétrica no Brasil nos próximos anos?

Nós temos que corrigir o que está errado hoje. Nós temos que fazer uma matriz que esteja mais baseada em atributos, e não só em preço; que termine com essas questões de subsídios para as energias eólica e solar, e que corrija essa situação em que o grande consumidor, que está no Mercado Livre, pague mais barato que a Dona Maria e o seu José. Eu não vejo o Brasil com sobras de energia, mas eu vejo o Brasil precisando corrigir essas questões que estão transformando o setor e dando a impressão de uma falsa sobra de energia. Um setor que tem uma tarifa muito cara, em particular para o mercado cativo, e que está cheio de subsídios que são pagos pelos consumidores.

O Brasil deveria olhar o que está acontecendo no mundo e a grande oportunidade que tem. O Brasil é um dos grandes garantidores da segurança alimentar do mundo, mas ele também pode ajudar o mundo a ter uma segurança energética, principalmente baseada em energia limpa. Vale lembrar que 85% da matriz elétrica brasileira é limpa, muito em função da água, ou seja, o Brasil já fez a transição energética da sua matriz elétrica.

O desafio é atrair para o Brasil indústrias que precisam de energia e que querem usar energia limpa. O mundo vai consumir, cada vez mais, energia, então não vai sobrar energia. Se nós olharmos o que está acontecendo na chamada quarta revolução industrial, como a Inteligência Artificial, as criptomoedas e as nuvens, tudo isso intensiva energia. Por exemplo, nós vemos hoje, em particular nos Estados Unidos, muitos data centers para armazenamento de dados que são intensivos no consumo de energia. Isso pode ser visto na curva de energia americana, que estava flat há alguns anos, mas que voltou a crescer em função da Quarta Revolução Industrial.

Quem fala que vai sobrar energia ou não sabe o que está falando, ou é desonesto intelectualmente ou não conhece o setor.

Perfeito, não vai sobrar energia, mas pelas informações da própria ONS, vai haver uma capacidade instalada, mal planejada, superior ao consumo. Isso vai acabar fazendo com que as contas de luz subam, correto?

É por isso que nós temos que desmontar essa espiral da morte do setor. Por exemplo, alguns projetos de energia solar e eólica já não vão mais ser feitos, pois não há mais como vender uma energia que está sobrando. O que está faltando é energia para a segurança energética e uma mudança no setor que reduza subsídios, e, consequentemente, a tarifa de energia. Se nada for feito, vai sobrar energia solar e eólica e a tarifa vai continuar subindo de forma vertiginosa.

Hoje, os dois principais responsáveis pela tarifa ser cara para a Dona Maria e o Seu José são os subsídios, que é a tal da Conta de Desenvolvimento Energético, a CDE, que já está com mais de R$ 30 bilhões, e a questão das linhas de transmissão, que é outro erro do planejamento energético. O governo tem feito leilões de transmissão e comemorado o seu sucesso, já que são bilhões de reais que serão investidos para trazer energia eólica e solar do Nordeste para o Sudeste. O problema é que o Brasil está construindo linhas de transmissão que vão ser ineficientes e subutilizadas, pois não faz sol e nem venta 24 horas por dia. Nos últimos 15 anos, os subsídios e as linhas de transmissão têm sido os principais responsáveis pela tarifa cara que está sendo paga. Isso precisa ser corrigido.

Se nada for feito, o setor elétrico brasileiro vai explodir. Vai ter racionamento, as distribuidoras vão quebrar, e os consumidores não vão conseguir pagar suas contas. É por isso que nós precisamos de um freio de arrumação que mude o modelo de forma a atender o tripé que mencionei.

Quando se diz que termelétricas deveriam ser dispensadas, isso acaba sendo uma irresponsabilidade, correto?

As termelétricas são fundamentais. Quando nós tivemos racionamento no Fernando Henrique, isso aconteceu porque não tínhamos termelétricas no Brasil. Quando parou de chover, ficamos sem energia. Depois disso, se começou a construir termelétricas. Desde então, nós já tivemos várias crises hídricas no Brasil, mas não tivemos racionamentos e apagões por causa das térmicas.

Não se pode abrir das térmicas, pois elas trazem segurança energética. Eu não estou falando das térmicas caras, mas das térmicas a gás, a carvão e nuclear. Na minha opinião, a energia nuclear precisaria ser mais desenvolvida, até porque, volto a dizer, o Brasil e o mundo estão cada vez mais eletrificados. O Brasil deveria ter, na base do sistema, as térmicas mais baratas gerando uns 10GW. Isso não elevaria os preços, pois, como já disse, reduziria a volatilidade. Essa volatilidade é boa para os comercializadores, que ganham dinheiro com isso, mas é ruim para os consumidores.

Nós precisamos de um novo modelo para o setor elétrico que entenda que não se pode abrir mão de uma fonte de energia. Você tem que colocar essa fonte de energia na matriz em função de preço, mas também de atributo.

Você está deixando bastante claro o problema do planejamento que foi feito, mas o que levou a esse planejamento?

O que levou a isso foi a ausência do Ministério de Minas e Energia, que tem ficado muito ausente dessa discussão. Isso não é de agora. Há uma ferida que precisa tomar ponto, mas o Ministério coloca band-aid. O problema é que uma hora o band-aid vai ficar ruim e a ferida vai voltar a sangrar.

Essa ausência do Executivo também tem levado a projetos de lei feitos no Congresso Nacional que, muitas vezes, não são os ideais. No Congresso há muito lobby, o que, na minha opinião, é legítimo, pois cada um tem que defender o seu interesse, mas você tem que ter o árbitro, que seria o governo. Por exemplo, os subsídios da eólica e solar têm sido dados através de projetos de lei contrários, muitas vezes, às próprias determinações da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica). Quando se coloca que nos próximos 36 meses vai continuar havendo subsídios para GD (Geração Distribuída) e para microgeração, isso vai para a conta do consumidor.

Outro ponto é que ao longo dos anos, houve um enfraquecimento das próprias agências reguladoras. Quando elas foram montadas no governo FHC, o conceito era que as agências reguladoras seriam órgãos de estado, e não de governo. Daí haver mandatos de diretores não coincidentes para que o próximo presidente herdasse alguns diretores do antigo. Isso não existe mais. Já faz tempo que as indicações dos diretores das agências são feitas muito mais por critérios políticos do que por conhecimento. Com isso, as agências são capturadas pelos políticos.

A própria governança do setor elétrico precisa ser revista. Na minha opinião, não faz mais sentido o Brasil ter uma agência reguladora de energia elétrica e uma agência reguladora de óleo e gás. Nós deveríamos ter uma agência de energia. A ONS deveria ser um órgão que, além de fazer a operação, como no mundo inteiro acontece, deveria fazer o planejamento e a liquidação de contratos, o que significaria acabar com a EPE (Empresa de Pesquisa Energética) e a CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica). A nova ONS também deveria fazer isso na área de gás natural, justamente para que fosse uma ONS do setor de energia.

Essa é a discussão que deveríamos ter, mas isso não acontece porque o processo foi politizado, e quando se politiza, para o político, quanto mais verbas houver no governo, melhor. A ANP e a Aneel, cada uma, tem a sua diretoria, mas se houvesse uma agência de energia, haveria uma única diretoria. A EPE tem não sei quantos diretores e a CCEE tem não sei quantos conselheiros, todos muito bem remunerados. Da mesma forma a ONS. O Congresso, em particular o Senado, deveria ter na sua pauta a discussão de revisão da governança do setor elétrico. Junto com essa questão, o governo deveria apresentar uma nova modelagem do setor elétrico ao Congresso.

Tecnicamente, qual deveria ser o tipo de energia que deveria ser priorizado no Brasil?

Todos os tipos de energia deveriam ser priorizados. Como disse, o consumo de energia elétrica só vai crescer. Como a energia elétrica é hoje uma questão de qualidade de vida, você tem que permitir que o cidadão consuma mais energia elétrica. Para que se possa atender o maior consumo de energia elétrica com acessibilidade, você não pode abrir mão de nenhuma energia. É preciso ter energia gerada por gás, biomassa, biometano, biogás, eólica, solar, hidrelétrica etc. 

Essa transição energética que estamos vivendo tem uma particularidade muito grande. Nas outras transições que o mundo viveu, você sempre tinha uma fonte de energia protagonista. Primeiro foi a lenha, depois o carvão mineral, e no século XX passou a ser o petróleo. Nesse novo ciclo, você não vai ter uma energia protagonista, mas uma diversidade energética. Isso faz com que cada país tenha que aproveitar as suas vantagens comparativas.

Como disse, dada a sua diversidade, o Brasil pode ajudar o mundo a ter segurança energética com energia limpa. Eu imagino que é isso o que vai acontecer nessa transição energética. Não vai haver protagonismo de uma fonte de energia, pois não há uma fonte que possa atender sozinha o tripé sustentabilidade, segurança energética e acessibilidade

Considerando a conversa que tivemos, você gostaria de acrescentar algum ponto a essa entrevista?

Nós precisamos rever o modelo do setor de energia no Brasil, pois se isso não for feito, nós vamos continuar nessa espiral da morte, que vai dar morte mesmo, pois nós vamos caminhar para uma situação que vai ser, cada vez mais, complicada. Isso é esquisito, pois o Brasil é um país muito rico em fontes primárias de energia. 

Para o Brasil, energia deveria ser uma vantagem comparativa para atrair indústrias do mundo inteiro. Como o Brasil tem muita energia, nós não deveríamos ter problema de tarifa alta, mas nós não conseguimos resolver isso. Toda hora, nós estamos preocupados se vai haver racionamento ou se vai haver apagão. Toda hora, nós vemos que a tarifa de energia está muito cara e que, daqui a pouco, as pessoas não vão conseguir pagar.

Nós temos que botar esses problemas na mesa e dar uma solução para isso, mas essa solução está sendo adiada. O governo tem obrigação de elaborar um estudo. Eu tenho até visto que o atual ministro está querendo mandar alguma coisa para o Congresso para rever o modelo, mas isso tem que ser feito com essas premissas que eu coloquei.

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