Herança digital: o que acontece com seus dados e contas após a morte?

De criptomoedas a perfis em redes sociais, a sucessão de bens digitais ainda carece de legislação clara e planejamento familiar Por Ludmila Corrêa

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Redes sociais
Redes sociais (foto Pxhere CC0)

Nos últimos anos, a questão da herança digital – que engloba ativos como contas de e-mail, perfis em redes sociais, arquivos armazenados em nuvem, criptomoedas e outros bens intangíveis – tem ganhado destaque no Brasil. A partir de 2018, surgiram no Judiciário brasileiro os primeiros casos relacionados à transmissão de bens digitais após a morte de seus titulares. Casos familiares que ganharam repercussão demonstraram um posicionamento mais restritivo da Justiça, com menor proteção aos herdeiros. Um exemplo foi o da Justiça de Minas Gerais, que negou o pedido de uma mãe para acessar os dados da filha falecida, arquivados em uma conta virtual, com base no sigilo garantido pela Constituição Federal; outro exemplo foi o do TJSP, que indeferiu o pedido da família para restaurar ou acessar a conta da falecida, fundamentando-se na proteção à privacidade e no exercício regular de direito pelo Facebook.

A ausência de legislação específica no Brasil apresenta facilidades e desafios: por um lado, permite que os tribunais analisem cada caso de forma individualizada; por outro, a falta de normas bem estabelecidas traz certa insegurança jurídica e abre portas para as disputas entre herdeiros. O PL 4/25 busca eliminar a necessidade de os herdeiros passarem pela fase de comprovar que determinado bem digital faz parte da herança. O projeto foi protocolado no Senado no início deste ano e trata da atualização e reforma do Código Civil, com diretrizes para a transmissão de ativos digitais, visando facilitar o acesso e a gestão de conteúdos de valor econômico pelos herdeiros.

Debates sobre tributação de ativos digitais no contexto sucessório também têm ganhado relevância. No caso das criptomoedas, há a incidência do ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação), que pode chegar até 8% em alguns estados, como São Paulo. Contas de redes sociais – mesmo perfis com valor econômico significativo, como os de influenciadores – permanecem em uma “zona cinzenta”, uma vez que não possuem critérios objetivos para avaliação fiscal, possibilitando interpretações distintas por parte das autoridades estaduais. Com isso, cresce a recomendação de planejar a sucessão digital da mesma forma que os bens tradicionais. As big techs, como o Google e o Facebook, já começaram a oferecer ferramentas para designação de “contatos de legado”, permitindo ao usuário indicar uma pessoa para gerenciar ou acessar seus dados após sua morte. Porém, essa nomeação não garante valor jurídico no Brasil. Para que seja efetiva, é fundamental registrar a vontade em testamento, pois a ausência de formalização traz consigo a possibilidade de disputas judiciais, dificultando o acesso dos herdeiros a contas, conteúdos ou valores vinculados a essas plataformas.

As famílias devem adotar algumas precauções a fim de garantir uma transmissão correta de bens digitais. Elaborar um testamento que inclua instruções sobre bens digitais, detalhando como cada ativo deve ser tratado após o falecimento, é uma medida recomendada. Manter um inventário atualizado de senhas e acessos, armazenado de forma segura, facilita a gestão dos bens digitais pelos herdeiros. Atualmente, também existem plataformas que asseguram o respeito à vontade do titular e previnem conflitos. Por isso, ter uma sucessão planejada é essencial, pois permite prever com clareza como o seguimento dos bens digitais ocorrerá, dado que as melhores estratégias para evitar as disputas e conflitos já foram aplicadas e a vontade do falecido será cumprida.

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O boom do mercado de criadores de conteúdo e influenciadores digitais desde a pandemia adicionou uma nova camada de complexidade: os perfis pessoais podem ter alto valor financeiro, tornando-se, na prática, verdadeiras empresas com receitas recorrentes. Sem um planejamento sucessório adequado, esses ativos correm o risco de se tornarem inacessíveis. O avanço da IA também traz um debate ético sobre a permanência de conteúdos, avatares ou vozes geradas digitalmente após a morte de um criador — envolvendo, agora, o legado imaterial e a preservação da identidade digital.

Para evitar disputas e preservar o patrimônio e a memória, buscar orientações claras sobre o destino desses ativos em testamentos, utilizar cofres digitais com protocolos de acesso e possuir um acompanhamento jurídico são estratégias fundamentais que podem ser adotadas pelas famílias. Ao mesmo tempo, a Justiça brasileira avança com projetos legislativos, e podemos notar o maior engajamento das plataformas tecnológicas na oferta de recursos para designação de herdeiros digitais — fatos esses que marcam o amadurecimento da discussão no país. Em um mundo cada vez mais conectado, planejar o destino dos seus bens digitais é garantir que sua história, seus dados e seus valores sejam respeitados mesmo após a sua partida. Acima de tudo, é um ato de responsabilidade com o próprio legado e com as futuras gerações.

Ludmilla Corrêa é advogada, sócia da Finvity

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