Hollywood, Bagdá: o prazer de matar

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Março, 2002. Sob o signo de Aries, o signo zodiacal da guerra, brindam-nos, as TVs americanas, com esta implacável destruição de Bagdá, em busca de um inimigo imaginário que não se defende a partir daquele sítio. Descabida, do ponto de vista estritamente militar, tamanha destruição. E de cortar o coração tal ataque à desarmada população civil, despojada de seus serviços básicos – comunicações em geral, rede hospitalar e escolar, abastecimento aos mercados, transportes, energia elétrica -, sem falar ainda no desemprego e na destruição de bens móveis e imóveis.
Os americanos invasores conseguem de uma só tacada criar ressentidos guerrilheiros para o futuro, aos milhares, os jovens que vivenciam este teatro de guerra, e ainda apagar de vez a piedade que o 11 de setembro inspirou na humanidade. Sem dúvida, os iraquianos dirão que aquele ataque a Nova York terá sido pouco ante a desumana maldade e o descabido inferno que desabaram sobre Bagdá.
Guernica na Espanha, imortalizada por Picasso, vilarejo que conheceu o ataque aéreo alemão – prévia da II Guerra Mundial – é a lembrança que nos ocorre quando a instituição militar armada rompe sua ética própria de apenas desembainhar armas em legítima defesa e, com esfuziante prazer, atacar civis.
Que outro sentimento exibem os militares americanos no ataque ao Iraque? Medo? Legítima defesa por ataques anteriores? Defesa de seu território? Defesa de honra? Ataque ao comunismo, mote comum nos tempos da guerra fria quando temiam os soviéticos? Nada disto. Todos sorriem, todos se apresentam sorrindo, apenas assustados aqui ou ali quando alguma resistência inimiga ocorre.
Há um sentido de urgência das tropas americanas e inglesas – e os espanhóis nesta saga, o que fazem, eles que não são saxões – urgência para chegar a Bagdá, prazer em alcançar Bagdá, gozo adiado, talvez para nada, talvez para iniciarem o brinquedo seguinte da reconstrução “humanitária” de Bagdá, agora pela próxima década, reconstrução a qual muitos países são chamados como se fosse a ceia do Senhor.
A iniciação militar ou do guerreiro, como a descreve o antropólogo romeno Mircea Eliade, especialista nestes temas iniciáticos, a iniciação do guerreiro, à par de sua sacralidade, do conhecimento de seus mitos de origem e de sua ética própria, além das técnicas do ofício, a iniciação militar tem produzido guerreiros e guerras com uma relativa lógica em seu bojo. Lógica, mas não necessariamente ética, como as guerras de conquista desnecessárias à sobrevivência do invasor, apenas exercícios militares.
Pois sabe o guerreiro bem formado que, antes da exibição militar, cabe-lhe o exercício da sabedoria da dissuasão. Quanto mais bem armado um grupamento militar, maior seu poder de dissuasão, evitando o derramamento de sangue de suas tropas e de seus adversários, de modo a evitar futuras retaliações, como a que grupos étnicos dos Bálcãs têm buscado alcançar ao longo do último milênio.
O prazer de matar exibido pelas tropas americanas no bombardeio absolutamente desproporcional a Bagdá, a partir da hipótese de destruir Sadam Hussein e sua Guarda Revolucionária ambos naquela milenar cidade (esta mesma tropa que se dispersou em 1991 quando as tropas da Coalizão invadiram o Iraque), este prazer de matar que revela uma má iniciação dos guerreiros americanos, certamente é fruto da iniciação militar advinda de Hollywood cujos heróis, nos filmes de guerra, enfrentam limpa e cirurgicamente os inimigos, sem destruírem cidades e populações, o que tornaria o orçamento de um filme de guerra impublicável. Ou quanto custaria refilmar Hiroshima? Sem falar nos filmes mais recentes que têm revelado treinamento militar apenas operacional, em que o soldado é transformado numa aética máquina de matar.
Mas Hollywood produz seus heróis de guerra e suas medalhas, à margem da vida como toda ficção. Mitos de guerreiros saxônicos são continuadamente atualizados por Hollywood, à luz da saga seminal dos Cavaleiros do Rei Artur, guerreiros que, em seu processo iniciático, se esquivaram em lutar contra populações civis desarmadas. Tais cautelas já não tiveram os Templários quando, ao início do século XIII, saquearam Constantinopla, deixando má lembrança junto aos historiadores do Oriente Médio, sendo referência até para Bin Laden que os cita em sua carta aberta ao Ocidente.
Aos guerreiros o que se pede é sabedoria, para justificar e conduzir um ataque, e piedade diante de um adversário derrotado. Jamais o prazer hollywoodiano de matar.
Que o Brasil, brindado pela natureza com petróleo, à semelhança do Iraque, saiba despertar para esta nova realidade, a do petróleo e a de Bagdá, não só para descobri-lo e explorá-lo, como também para defendê-lo amanhã, quando um cenário análogo se desenhar em seu horizonte.
Que a imensa tristeza que as cenas da destruição de Bagdá nos provocam seja uma severa lição sobre o que pode-nos reservar o amanhã, vez que possuímos idêntica riqueza, o petróleo. Aos que conhecem a História brasileira, haverão de se lembrar da atuação do embaixador americano Lincoln Gordon, no golpe militar de 64, apoio por ele mesmo confessado, como hoje revelam os documentos liberados por Washington sobre o tema.
Que a destruição de Bagdá nos ensine que há guerreiros que avançam implacáveis, exibindo tão somente seu prazer de matar.
Hollywood em Bagdá. Que Alá se apiede de seu povo, cure sua dor e sua inimagináveis e inexplicáveis feridas, no corpo e na alma.

Paulo Guilherme Hostin Sämy
Ex-conselheiro da Abamec-Rio.

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