Honra e glória para ‘Ainda estou aqui’

Ainda Estou Aqui, primeiro Oscar do Brasil: roteiro, atuações marcantes e impacto histórico da emocionante cinebiografia

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Ainda Estou Aqui (foto divulgação)

Pela terceira vez, fui ao cinema assistir ao filme Ainda estou aqui, que acaba de arrebatar o primeiro Oscar do Brasil na categoria de filme internacional, em 97 anos da Academia de Hollywood. Nas três ocasiões, pude observar o talento estrondoso não somente de Fernanda Torres, mas igualmente magistral de Fernanda Montenegro. Filha e mãe dão veracidade à vida de Eunice Paiva, levando à plateia emoção, comoção, serenidade e, especialmente, contenção nos atos, ações, olhares e pequenos sorrisos. O elenco da película, dirigido pelo genial cineasta Walter Salles, é irretocável, com Selton Mello vivendo o deputado cassado Rubens Paiva num momento sublime de sua carreira, além dos demais atores e atrizes que encarnam seus papéis com raro talento, brilho e arte.

O roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega foi baseado na autobiografia homônima de Marcelo Rubens Paiva, escrita há dez anos. O filme retrata a história de Eunice Paiva, que acabou se tornando ativista política após a prisão e o consequente desaparecimento de seu marido. Em razão disso, foi presa em 1971, com uma de suas filhas, Eliana Paiva, durante a ditadura militar vivida no Brasil no período de 1964 a 1985.

Visto por mais de 5 milhões de pessoas no Brasil e sucesso de bilheteria em Paris, Lisboa e Nova York, Ainda estou aqui foi aplaudido por 14 minutos no Festival de Veneza, conquistou prêmios nos principais festivais do mundo e teve Fernanda Torres indicada ao prêmio de melhor atriz, cuja vencedora acabou sendo Mikey Madison, de 26 anos, por Anora. Fernanda Torres, dentre outros prêmios, conquistou o Globo de Ouro por sua belíssima atuação no filme de Walter Salles.

As cenas nas quais Rubens Paiva é retirado de sua casa, em uma tarde de janeiro de 1971, na Avenida Delfim Moreira, 80, no Leblon, em ambiente cênico filmado em uma casa localizada na Urca, são memoráveis. Naquele dia, Rubens é levado por seis homens a mando do Exército para um interrogatório e não retorna mais. No dia seguinte, Eunice também é levada, com um capuz na cabeça, junto com sua filha de 15 anos, Eliana (Luiza Kosovski). Eunice é questionada se seu marido está aliado a “facções terroristas” pró-redemocratização, o que ela nega constantemente, dizendo que ele, depois do autoexílio devido à cassação de seu mandato pelo Ato Institucional nº 1, não se envolveu mais em política.

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Eunice permanece presa por cinco dias até ser liberada, sem notícias de seu marido. Ela retorna para casa e se reencontra com Eliana e os demais filhos: Marcelo (Guilherme Silveira), Ana Lúcia (Bárbara Luz) e Beatriz (Cora Mora). Manchetes falsas são publicadas dizendo que Rubens fugiu, mas tanto Eunice quanto seus amigos não acreditam nos jornais. Eunice, com a ajuda do advogado Lino Machado (Thelmo Fernandes), recorre a um habeas corpus a fim de garantir a liberdade e os direitos de seu marido.

Baby Bocayuva (Dan Stulbach), amigo de Rubens, confessa a Eunice que ele, Gaspar e Raul Riff (Daniel Dantas) prestavam suporte aos exilados em segredo. Mais tarde, o jornalista Félix (Humberto Carrão), amigo da família, conta a Eunice que Rubens foi morto e que seu corpo está desaparecido, porém os militares não vão confirmar isso oficialmente.

Com a perda do marido, Eunice tenta reestruturar a vida da família, e todos voltam a viver em São Paulo, após Eunice alugar a casa da família na Zona Sul do Rio. Ela decide voltar para a faculdade e, aos 48 anos, se forma em Direito. Em 1996, Eunice, agora uma ávida defensora dos direitos dos povos indígenas, recebe a notícia de que o Estado reconheceu o assassinato de Rubens, disponibilizando oficialmente um atestado de óbito. Ela dá uma entrevista argumentando que o governo deve indenizar as famílias das vítimas do regime e julgar os crimes cometidos na ditadura. São cenas impressionantes, verdadeiramente marcadas pela alegria de receber a certidão de óbito de Rubens e, ao mesmo tempo, pela contrição.

Anos depois, em 2014, Eunice, agora interpretada por Fernanda Montenegro, já em idade avançada e padecendo do Mal de Alzheimer, aparece em um tradicional almoço em família, junto com filhos e netos. Uma reportagem sobre a ditadura passa na televisão e menciona Rubens como um dos ícones da resistência, despertando sua atenção. Sem dizer uma só palavra, Fernanda Montenegro, apenas com olhares, posturas e gestos faciais e labiais, preenche, com espetacular talento, a tela do cinema. São cenas impactantes e absolutamente extraordinárias, que somente uma atriz do calibre de Fernanda Montenegro poderia encenar.

Nos créditos finais, informa-se que Rubens Paiva foi morto entre 21 e 22 de janeiro de 1971, em um dos quartéis da 1ª Divisão do Exército no Rio de Janeiro, e que cinco homens foram denunciados por sua tortura e assassinato, mas continuam impunes até hoje. Além disso, informa-se que Eunice faleceu em 2018, aos 89 anos, em São Paulo, após conviver com Alzheimer por 15 anos.

O filme se destaca não apenas pelo roteiro e pelas atuações, mas também pela escolha musical, que, em várias cenas, chega a dialogar diretamente com as falas dos personagens. Como grande parte da trama é ambientada na década de 1970, canções da MPB e do movimento Tropicália foram selecionadas com extremo cuidado para compor o tom das cenas e transportar o espectador para o contexto histórico da época, marcado pela censura, violência e luta por liberdade.

Ambientado nos anos mais intensos dos anos de chumbo, com a aparição de uma foto do presidente Médici (1969-1974), o longa traz uma trilha sonora poderosa, repleta de músicas com duplo sentido, muitas delas censuradas naquele período. Nomes icônicos como Erasmo Carlos, Caetano Veloso, Os Mutantes, Tim Maia e Tom Zé ajudam a reforçar a atmosfera de resistência e criatividade que permeava a cultura brasileira.

Ainda estou aqui é um filme espetacular. Merece ser visto, observado, percebido e digerido com o máximo de atenção. Retrata a história de uma família que, na realidade, é a história de centenas de famílias brasileiras que perderam seus entes queridos em assassinatos dos mais covardes e brutais, em um período negro da República, ao longo de 21 anos. Wladimir Herzog e Stuart Angel são lembrados, em imagens, nos momentos finais do filme, quando são homenageados.

Bom viver para assistir a tamanha obra cinematográfica. De fato, a vida presta, e vamos todos sorrir.

Paulo Alonso é jornalista.

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