O ex-professor Fernando Henrique Cardoso aposentou-se prematuramente do trabalho produtivo na USP, mas lá deixou muitos e solícitos amigos que, agora, vêm espontaneamente socorrê-lo das alhadas em que é pilhado, sempre que se divulgam pormenores sobre os “negócios de Estado”, promovidos em seu governo.
Em teoria, muitos intelectuais conhecem as viagens, as artes, os prazeres da mesa e os encantos dos salões mundanos. Mas, estorvados pela parcimônia da vida acadêmica, nem todos alcançam experimentar, na prática, aquilo que imaginam ser as belas coisas da vida. E talvez por isso mesmo os desvãos do poder sempre tenham sido um habitat almejado e disputado pelos inefáveis intelectuais com tendências nefelibáticas. Afinal, daí sempre pode brotar uma funçãozinha diplomática aqui ou acolá, ou uma comissãozinha, com direito a viagem internacional e hotéis de cinco estrelas.
Não deve ter sido por outro motivo, aliás, que o próprio FHC, ainda com seu blusão de couro e o boné de “intelectual recém-chegado do exílio”, procurou aproximar-se do então presidente, general Figueiredo. Depois, pela força do deslumbramento (não precisava, pois aí já era senador e o amigo e sócio Serjão comandava a Eletropaulo), tentou arduamente ser chanceler do malogrado presidente Collor de Mello. Ao qual, de resto, não faltaram jaguaribes, marcíliosmarques e celsolafers, para exaltar as virtudes de estadista. Deu no que deu. Mas deixemos esse tema aos cuidados de intelectuais competentes para analisá-los, como Jurandir Freire Costa ou Renato Mezan, e mergulhemos no quotidiano de nossos tristes trópicos.
No artigo Quanto custa uma estatal ?(Folha de S. Paulo, 30/05/99), o professor emérito da USP e presidente do Cebrap, José Arthur Giannotti, defendeu, em última análise, a transferência, às escondidas, do patrimônio público para grupos privilegiados, ligados ao poder. Para justificar sua opção, o emérito professor citou Kant fora do contexto, concluindo que “há uma diferença entre a moralidade subjetiva e moralidade pública.” etc.
Como evidência de que tal disparate não poderia passar pela cabeça do filósofo de Königsberg, basta lembrar os seguintes pensamentos, por ele manifestados em Zum ewigen Frieden: “Todas as ações relativas ao direito de outros, que não são divulgadas, são injustas. Este princípio deve ser considerado sob o aspecto ético e, também, do ponto de vista jurídico, ou do direito das pessoas”, e “uma intenção que não pode ser divulgada e que, para ser concretizada, precisa ser dissimulada, ameaça de injustiça toda a coletividade”. Repare o leitor que todos os atos do atual governo, planejados na calada dos gabinetes de Brasília, quando divulgados por meio dos implacáveis “grampos”, revelaram-se escandalosamente anti-éticos, além de contrários aos interesses da sociedade.
Por fim, cumpre assinalar a vacuidade do argumento do professor Giannotti, no trecho em que afirma que “se André Lara Rezende estivesse agindo para beneficiar Pérsio Arida, bastaria aconselhá-lo a baixar sua oferta”. Pois bem, nas gravações publicadas no ano passado, há um trecho em que André Lara Rezende diz para Pérsio Arida precisamente o seguinte: “Joga o preço para baixo” etc.
À vista disso penso que, de agora em diante, será melhor para a biografia de nosso pobre professor emérito seguir o exemplo do professor Antônio Cândido, que se recusa a falar em público sobre virtudes ou mazelas de amigos no poder.
Joaquim Francisco de Carvalho
Consultor no campo da energia elétrica.