Há poucos dias, o Governo Federal anunciou um aumento da alíquota do imposto incidente sobre operações de crédito (IOF – crédito) sob a justificativa de se cobrirem os gastos com programas sociais de transferência de renda (programa Bolsa Família, renomeado pelo atual governo de Auxílio Brasil).
O próprio discurso governamental, portanto, deixa cristalinamente claro que o referido aumento de alíquotas tem justificativa arrecadatória. Não se cogita a necessidade de intervir sobre a economia para corrigir uma falha de mercado, para estancar a oferta excessiva de crédito ou algo similar. Simplesmente: é preciso mais dinheiro.
Acontece que o instrumento eleito para a arrecadação é de duas uma (se não ambas): pouco inteligente ou perverso. A pouca inteligência revelada pela medida é de fácil percepção. Nos dias atuais, a maioria das operações de crédito realizadas no mercado se contextualiza em necessidades extremas, configuradas em um período ainda de pandemia. Em resumo, pessoas e empresas estão tomando empréstimos para se salvarem de situações desesperadoras ou pelo menos para amenizá-las.
Essas situações são decorrentes de longo período de desemprego para trabalhadores, de baixos rendimentos de autônomos, de tímido ou nenhum faturamento para empresas, tudo já se arrastando por um período inesperadamente longo. Não se trata de empréstimos que estejam sendo majoritariamente tomados para financiar crescimento, investida em novos mercados, aumento de produção ou plantas fabris. Portanto, são empréstimos cuja tomada revela baixa ou nenhuma capacidade econômica. Em resumo bastante simples, escolheu-se “tirar de onde não há”; isso não pode ser inteligente.
Já a perspectiva perversa do referido aumento não é tão óbvia e é ela que se pretende explicar. Um sistema de impostos deve se basear necessariamente no princípio da igualdade. Não há dissenso sobre isso. Mas se trata de um princípio formal, que não fornece ele mesmo seus comandos materiais. Aprendemos com muitos pensadores, ao longo de muitos séculos, que igualdade é tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades.
O problema é que ninguém é absolutamente igual. As pessoas e situações podem se encontrar em situação equivalente ou não a depender do critério de comparação. Daí que não se aplica o princípio da igualdade perquirindo quem é igual a quem, mas sim, quem é igual a quem, sob certo parâmetro de comparação.
Já ficou clássica a indagação de professores de Direito Tributário (como Klaus Tipke e Luís Eduardo Schoueri, só para citar alguns nomes bastante conhecidos) sobre quem são os iguais para efeito de aplicação do princípio da igualdade. A pergunta que fazem, pode ser assim descrita: “Iguais em relação a quê?”
Ora, os escritores José Saramago e Gabriel Garcia Marquez são iguais em relação ao que se dedicam – a literatura – mas são diferentes em relação à nacionalidade; o primeiro é português, e o segundo, colombiano; são iguais em relação a terem ambos já recebido o Prêmio Nobel de Literatura, mas são diferentes em relação ao idioma em que escrevem.
Pensando em critérios de comparação mais afeitos à construção de regras jurídicas, é bastante claro que alguns, no caso do Brasil, são peremptoriamente vedados, por dispositivos constitucionais explícitos, como o gênero, a crença e a raça. Simplesmente, as regras legais não podem diferenciar pessoas com base nesses critérios.
Por outro lado, na maioria dos casos, para se aplicar o princípio da igualdade não basta saber quais critérios são vedados, é preciso identificar quais devem ser obrigatoriamente utilizados. E esta identificação é finalística. A depender da finalidade que se quer atingir, identificar-se-ão os critérios de comparação devidos.
Aprendemos com pensadores dos últimos séculos que, para financiar as despesas estatais em geral, o principal instrumento à disposição dos estados é o imposto. Também aprendemos com eles, em matéria de igualdade, que para diferenciar contribuintes, o critério de comparação primário deve ser a sua capacidade econômica ou contributiva (independentemente de discussões acadêmicas sobre serem sinônimas ou não).
Para se definir quem paga e quem não paga cada imposto, o critério de diferenciação é: revelar capacidade contributiva. Quem a demonstrar paga o imposto e quem não a demonstrar não o paga. Assim, a capacidade contributiva é o critério que deve ser utilizado pelas regras de impostos para definir quem paga e quem não paga um dado imposto. À pergunta sobre quem é igual e quem é diferente pela perspectiva das regras sobre impostos se responde, portanto, da seguinte forma: é igual, ou melhor, está em situação equivalente, quem revele capacidade contributiva.
Contudo, lembre-se que a igualdade impõe tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade. Assim, não basta distinguir quem evidencia e quem não evidencia capacidade contributiva, é preciso diferenciá-los na medida dessa desigualdade, na medida de tal capacidade contributiva.
Já se antecipou, no começo deste texto, o problema. No cenário atual, é bastante intuitivo que tomar dinheiro emprestado não revele capacidade contributiva alguma ou, no melhor cenário, revele-a em pouca medida e, além disso, quanto mais se tomar emprestado, provavelmente, menor capacidade ainda revelar-se-á, pelo menos na maioria dos casos. Logo, não parece muito igualitário, pela perspectiva deste critério de comparação (capacidade econômica) que se tribute quem toma crédito, muito menos que se cobre tanto mais imposto quanto mais crédito a pessoa ou empresa venha a tomar.
Acontece que também há certo consenso de que, embora a função primordial dos impostos seja a derivação de receitas, também se concorda, em geral, ser igualmente válido que eles desempenhem outras funções, como o estímulo ou desestímulo de determinados comportamentos pelos agentes econômicos. Quando o imposto revela esta “outra função” é que se admite a diferenciação de contribuintes conforme um parâmetro diferente de sua capacidade econômica. É assim que se justifica que contribuintes com manifestações de riqueza equivalentes sejam diferenciados conforme critérios ambientais, por exemplo.
É preciso, pois, que a regra do imposto tenha alguma justificativa diferente da arrecadação para que ela diferencie contribuintes por um critério diverso da riqueza que revelam ou, melhor, de sua capacidade contributiva. No caso do IOF, uma série de justificativas podem, em princípio, justificar distinções baseadas em outros critérios, que não a manifestação de riqueza, visando ao controle do câmbio, estabilidade do mercado de valores mobiliários e, por fim, controlar ou estimular o crédito, por exemplo.
É disso que se trata. Se, nos dias atuais, tomar empréstimo tende a revelar não capacidade contributiva, mas sim calamidade financeira, aumentar o imposto sobre tais operações é diferenciar contribuintes por um critério manifestamente contrário à capacidade econômica do contribuinte, significa cobrar mais imposto de quem, literalmente, “pode menos”. Poderia, em tese, haver uma justificativa de ordem econômica para isso, por exemplo, a necessidade de se conter o endividamento. Ocorre que, na situação econômica atual, em geral, endividamento de famílias e empresas não é mais uma opção.
Como a indução de comportamento não é uma justificativa minimamente plausível para aumentar o imposto sobre operações de crédito, resta exclusivamente à função arrecadatória do imposto, que, aliás, reconheça-se o mérito, foi sincera e explicitamente noticiada pelo governo. Mas aí chega-se à injustiça inaceitável. Se a finalidade que justifica a regra legal é arrecadar, ela só pode se pautar pela capacidade econômica do contribuinte. Quem pode mais, paga mais.
Contudo, o que se fez foi o contrário, aumentou-se a tributação dos que estão em situação de calamidade financeira. A finalidade específica é meritória: custear um programa social de transferência de renda importantíssimo, ainda mais em tempos atuais. Acontece que não se pode financiar isso às custas de quem não revela capacidade econômica, às custas de quem recorre ao extraordinariamente caro crédito brasileiro para, em geral, lidar com emergências gravíssimas.
Financiar o Auxílio Brasil com recursos retirados de quem hoje toma empréstimos, para além de pouco inteligente, é cruel, é, perverso, é profundamente injusto. Não se pode aceitar combater a miséria tirando recursos dos pobres ou endividados.
Paulo Vieira da Rocha é sócio do escritório VRBF Advogados, pesquisador no Grupo de Pesquisa Tributação, Globalização e Isonomia da USP e professor adjunto de Direito Tributário da Universidade do Estado do Amazonas.
Acho exagerado o post. Em termos concretos, o IOF vai retirar 1 real a cada 1000 reais transacionados, é muito pouco para “quebrar a banca” dos tomadores de empréstimos. O pobre mesmo, o recebedor de 1 a dois salários, ou menos, esses vão pagar quanto de IOF em um mês? dois reais? Imposto nunca é bem vindo, e no caso brasileiro é mais do que imoral, mas o aumento do IOF está muito longe de ser um problema sério.