Lei 208: um artifício contábil para maquiar a situação fiscal

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Maria Lucia Fattorelli
Maria Lucia Fattorelli (foto de Waldemir Barreto, Agência Senado)

Por Gilmara Santos, especial para o Monitor

A publicação da Lei Complementar 208/24, que altera a Lei 4.320/64 e a Lei 5.172/66 (Código Tributário Nacional), que dispõe sobre a cessão de direitos creditórios originados de créditos tributários e não tributários dos entes federativos, é questionada no meio jurídico e no econômico e deve ser alvo de uma ação direta de inconstitucionalidade. A LC 208 introduz o protesto extrajudicial como causa de interrupção da prescrição, prevendo a possibilidade de ceder créditos tributários dos municípios, estados e União para o ente privado poder protestar e cobrar.

Por um lado, os que defendem a nova norma consideram que a tendência é que haja mais agilidade nas cobranças e efetividade maior da arrecadação. Por outro lado, os que são contra a mudança avaliam que se trata de uma securitização de créditos públicos, sendo lesiva e onerosa, além de inconstitucional.

“Avalio essa lei como um grande absurdo, tendo em vista que essas operações que estão chamando de securitização correspondem, na prática, a uma operação de crédito disfarçada, que sequer é contabilizada como tal, e essa dívida é paga por fora dos controles orçamentários, mediante desvio de parte das receitas públicas que passam a ser destinadas aos investidores privilegiados antes mesmo de alcançar os cofres públicos”, afirma Maria Lucia Fattorelli, coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida e integrante da Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB.

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Para ela, essa modalidade de operação de crédito fere toda a legislação de finanças do País, desde a Constituição Federal, passando pela Lei de Responsabilidade Fiscal e demais normas. A entidade já prepara uma ação de inconstitucionalidade da medida. A especialista comenta que o impacto será extremamente negativo e cita quatro razões:

1 – Em primeiro lugar, para estruturar a operação, o ente federado terá um custo elevadíssimo. Essa estrutura demanda a criação de uma empresa (ou fundo) interposta, que emitirá debêntures a serem vendidas a investidores privilegiados do mercado financeiro; somente investidores “qualificados” (QIB) têm acesso a esse tipo de papel, que é vendido diretamente, sem oferta pública.

A emissão dessas debêntures (sênior e subordinadas) envolve uma parafernália de contratos, escrituras, e tudo isso também tem um custo elevado. Na sequência, são emitidos diversos contratos para cada passo da operação. Além desse custo com formalidades, ainda há um elevado custo com taxas diversas. Para se ter uma ideia desse custo, no Estado de Goiás a implantação do esquema foi abortada quando o agente estruturador apresentou uma conta de mais de R$ 325 milhões.

2 – O ente federado vende parte de sua arrecadação ao investidor privilegiado em troca do crédito antecipado que recebe. Essa parte da arrecadação vendida deixa de ser repassada aos cofres públicos do ente e passa a ser transferida para um conjunto de contas vinculadas ao esquema, criadas na rede arrecadadora. Quem controla essas contas vinculadas é o investidor privilegiado, ou seja, o ente federado perde o controle sobre essa parte da arrecadação. Se os orçamentos públicos já têm sido insuficientes, por toda parte, para atender às demandas urgentes da população, essa situação irá se agravar diante dessa subtração de parte da arrecadação.

3 – A operação é onerosíssima. Em Belo Horizonte, por exemplo, o município recebeu um crédito antecipado por ocasião da venda das debêntures no montante de R$ 200 milhões. Em troca, ficou obrigado a desviar R$ 880 milhões, acrescidos de atualização monetária (IPCA) mais juros (1% ao mês, que perfaz mais de 12% ao ano). “É como pegar um empréstimo de 200, mas o contrato é de 880! Totalmente insustentável! Isso obrigará o ente federado a fazer sucessivas emissões de debêntures, para conseguir pagar as obrigações anteriores, em esquema conhecido como pirâmide financeira.”

4 – Por fim, o ente federado assume, de forma irrevogável, todos os riscos da operação e garante explicitamente a reposição de valores e indenizações diante de todo e qualquer evento que venha a ocorrer. “Nesse sentido, a operação sequer poderia ser chamada de ‘securitização’, pois quando essa é legítima há o que se chama de ‘true sale’, ou seja, o papel é vendido e o comprador assume os riscos futuros, o que não acontece no caso desse esquema da Lei Complementar 208/2024”, explica Fattorelli.

Abrir mão do papel do Estado

A advogada Daniela Poli Vlavianos, sócia do escritório Poli Advogados & Associados, concorda que a Lei Complementar 208/2024, que possibilita aos estados a venda de créditos tributários para fundos de investimento, introduz uma modalidade de securitização da dívida pública. “Apesar de aparentar uma solução eficiente para a recuperação de créditos, essa medida suscita inúmeras críticas, especialmente do ponto de vista jurídico e econômico”, diz Daniela.

Primeiramente, afirma a advogada, a alienação de créditos tributários a entidades privadas pode ser vista como uma transferência indevida de uma função essencialmente pública. “A cobrança de tributos é uma prerrogativa do Estado, que detém o poder coercitivo necessário para garantir a arrecadação. Delegar essa função a fundos de investimento configura uma abdicação dessa responsabilidade, comprometendo o papel do Estado como garantidor do interesse público”, dispara Daniela.

Ela destaca ainda que a securitização dos créditos tributários vai gerar uma série de conflitos de interesses. “Os fundos de investimento, ao adquirirem esses créditos, visam o lucro e podem adotar práticas agressivas de cobrança, que certamente irão culminar em situações de abusividade e afronta aos direitos dos contribuintes. Isso se dá porque os fundos não estão sujeitos aos mesmos princípios de transparência e legalidade que vinculam a Administração Pública”, afirma.

Outro ponto preocupante, segundo a advogada, é a insegurança jurídica decorrente dessa operação. A transferência de créditos para fundos privados pode complicar a vida dos contribuintes, que passam a ter que lidar com entidades diversas, dificultando a negociação de débitos e a regularização fiscal. Essa fragmentação vai levar a litígios, aumentando a judicialização da cobrança tributária e sobrecarregando o Poder Judiciário.

“Do ponto de vista econômico, essa medida é interpretada como um artifício contábil para maquiar a situação fiscal dos estados. A venda de créditos tributários pode gerar uma receita imediata, mas não resolve os problemas estruturais de arrecadação e gestão fiscal, podendo até agravá-los. A securitização vai incentivar a administração a adotar uma postura leniente na cobrança de tributos, na expectativa de vender créditos no futuro, em vez de adotar medidas efetivas de gestão e recuperação”, considera Daniela.

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