Liberalismo e tolerância

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Na sociedade liberal, o poder, em qualquer das formas de que se revista, não pode ser distribuído igualmente para todos, mas proporcionalmente, segundo as diferenças individuais. Mas isto só se torna possível quando se atenta para o terceiro fundamento do liberalismo, a tolerância, que nos permite conceber como moralmente correta a distribuição desigual de bens e poderes, como a única forma de se atingir a equidade, pressuposto da coesão e da solidariedade social. A diversidade como fundamento ético da democracia é o pressuposto que permite a discórdia, a divergência e a aceitação do contrário. Mas a diversidade, a discordância ou a divergência, mesmo sendo pressupostos da democracia, não são valores absolutos, pois encontram limites na ordem jurídica imposta pelo sistema político.
A manifestação da discordância, ou da divergência, por meios não pacíficos, por exemplo, é intolerável para a estabilidade democrática. Quando comparamos a diversidade ou o pluralismo, limitados pela ordem jurídica democrática, com o princípio ético liberal da tolerância, estamos lidando, no primeiro caso, com um sistema político e uma ordem jurídica, elementos dos quais a segunda é uma conseqüência ou resultante do primeiro. Quando aludimos à tolerância, ao contrário, estamos nos referindo a uma ordem jurídica que deve ser justa, se fundada na equidade e que será injusta se não atender esse requisito. Isto significa que um sistema político que não considere como um valor autônomo a justiça, calcada no princípio da equidade, pode ser um sistema político democrático, mas não será liberal.
A tolerância em que se funda a ordem política liberal diz respeito aos atributos da cidadania, enquanto na ordem jurídica liberal, eles dizem respeito às características naturais do ser humano, independentemente da sua condição de cidadania. Neste sentido, a limitação quanto ao desfrute dos direitos individuais, no liberalismo, diz respeito ao exercício da cidadania como atributo político, mas não diz respeito à inviolabilidade dos direitos naturais da pessoa humana. É por isso que uma ordem jurídica liberal pode admitir a pena de privação temporária da liberdade, mas não a supressão da vida, como a pena de morte, ou a prisão perpétua que impede e torna impossível o princípio da reabilitação.
Num regime democrático, a legitimidade, como assinala Norberto Bobbio, é o princípio que subordina a organização política à ordem jurídica, razão porque ele traduz legitimidade democrática como o governo das leis, em oposição ao governo dos homens. Logo, a legitimidade não seria mais do que a prévia aceitação, na investidura e no exercício do poder, da ordem jurídica existente. Em outras palavras, legalidade e legitimidade seriam sinônimos perfeitos, pois o que assegura a legitimidade do sistema político é o acatamento ao conjunto de normas jurídicas que o regem. Quando mudam as regras, segundo as normas políticas existentes, muda, consequentemente, a legitimidade.
Como no liberalismo se distingue a ordem jurídica do sistema político, na medida em que a lei só é a emanação legítima do sistema jurídico quando é justa e equânime, há que se distinguir a legalidade jurídica da legitimidade política. Neste sentido, e com essa concepção, o conceito de legalidade é aquele que é conhecido “ex ante”, em face das normas legais vigentes. Já a legitimidade política é sempre estabelecida “ex-post”, na medida em que depende da aceitação de atos que só podem gerar consenso ou discordância, depois de tomados. O pressuposto na democracia é que os atos baixados segundo a ordem legal em vigor são sempre legítimos, ao passo que a legitimidade no sistema político liberal não se obtém pela simples conformidade com a lei, mas devem merecer, além disso, um grau de acatamento que assegure sua pacífica aceitação, desde quando e sempre que tenha por objetivo assegurar ou ampliar a liberdade, garantir a igualdade, preservar a equidade e tornar efetiva a diversidade. Se entendido com esses fundamentos, o liberalismo não aceita nem prega a passividade do Estado, nem a liberdade do mercado. Como duas esferas distintas, ambos têm que sobreviver e coexistir, mas tanto um quanto o outro só têm legitimidade na medida em que possam servir a coletividade, sem prejudicar a individualidade.

Marco Maciel
Vice-presidente da República

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