Margem Equatorial: petróleo, pobreza e os desafios do desenvolvimento brasileiro

Extrair bilhões de barris petróleo na Margem Equatorial deve ser alavanca para erradicar a pobreza energética em terra firme. Por Israel Fernando de Carvalho Bayma

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Margem Equatorial - Bacia Potiguar-Amapá
Margem Equatorial - Bacia Potiguar - Amapá Águas Profundas (Ilustração Petrobras)

Uma análise atenta da agenda legislativa do Congresso Nacional revela a tramitação de duas proposições que merecem especial atenção, em razão de seu impacto potencial sobre a soberania energética e o futuro da política de exploração de recursos naturais no país.

A primeira delas é o Projeto de Lei 3.178/2019, atualmente em análise no Senado Federal, que propõe eliminar a preferência legal da Petrobras na exploração das reservas do pré-sal e substituir o regime de partilha por um modelo de licenciamento nos próximos leilões. Trata-se de uma mudança que fragiliza o papel estratégico do Estado na governança dos recursos petrolíferos nacionais. Após permanecer inativo desde 2019, o projeto foi reativado em 4 de fevereiro de 2025 e já conta com parecer favorável aprovado em comissão.

Paralelamente, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2.632/2025, de iniciativa do Poder Executivo, que propõe acelerar a realização de leilões de blocos ainda não licitados, destinando os recursos arrecadados prioritariamente ao pagamento da dívida pública – diretriz que desvirtua a função estruturante que a renda petrolífera deveria cumprir no desenvolvimento econômico, social e ambiental do país.

Ambos os projetos tramitam em regime de urgência e avançam nas respectivas casas legislativas com escasso debate e sem participação da sociedade civil organizada. Enquanto isso, a corrida pela exploração da Margem Equatorial avança em ritmo acelerado – e, sob diversos aspectos, de forma desafiadora.

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Leilões da ANP e empresas estrangeiras

O Monitor Mercantil, em sua edição nacional impressa de 18 de junho passado, destacou que o leilão de petróleo realizado nos últimos dias, no âmbito do 5º Ciclo de Oferta Permanente de Concessão da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), colocou em oferta 172 blocos, dos quais apenas 34 foram efetivamente arrematados – sinalizando seletividade ou cautela por parte das empresas.

Informou também aos seus leitores que, desses, 19 blocos situam-se na Bacia da Foz do Amazonas, uma das regiões mais ambientalmente sensíveis e geopolítica e energeticamente estratégicas da Margem Equatorial brasileira. Complementou, informando que as ofertas apresentadas pelas nove empresas participantes atingiram ágio superior a 500%, evidenciando a atratividade econômica dos ativos ofertados para o setor petroleiro.

Ressaltou ainda que a Federação Única dos Petroleiros (FUP), entidade sindical nacional representativa dos trabalhadores do setor, manifestou grande preocupação com os resultados do leilão, por entender que parcela significativa da estratégica Margem Equatorial foi entregue a empresas estrangeiras.

Segundo a FUP, ao privilegiar o regime de concessão – em detrimento do regime de partilha de produção – e a atração de interesses privados estrangeiros, o Governo Federal pode enfrentar maiores dificuldades para dispor de instrumentos eficazes de planejamento e distribuição da riqueza gerada pelo petróleo, assegurando que seus benefícios alcancem, prioritariamente, as regiões mais pobres do país.

Margem Equatorial, pobreza na Amazônia e COP30

Tudo isso é extremamente relevante para a sociedade brasileira, pois os desafios que se impõem a partir de agora são consideráveis.

O primeiro grande desafio é a superação da pobreza. Municípios da Margem Equatorial – como Oiapoque, no Amapá, e Almeirim, no Pará – registram índices de pobreza que beiram 40% da população, com mais de 60% dos domicílios dependentes do programa Bolsa Família.

A promessa de geração de empregos diretos na fase exploratória contrasta absurdamente com a realidade atual: quase 80% da população economicamente ativa na região encontra-se em situação de subemprego ou na informalidade, e mais de 60% das famílias sequer têm acesso a serviços públicos essenciais como água tratada e saneamento.

Explorar petróleo na Margem do Amazonas, às portas da maior reserva florestal do mundo, impõe esse desafio: extrair bilhões de barris de petróleo em águas profundas deve representar, antes de tudo, uma alavanca para erradicar a pobreza energética em terra firme. Macapá, capital do Amapá, tem quase 20% de sua população ainda sem acesso regular à energia elétrica – ironicamente, a mesma taxa registrada em 2010, antes do início da expansão do programa Luz para Todos na Amazônia.

O segundo desafio está inscrito no calendário internacional. Em novembro de 2025, Belém sediará a 30ª Conferência das Partes da Convenção do Clima (COP30), ocasião em que o Brasil reafirmará o compromisso de zerar o desmatamento ilegal e reduzir em 50% as emissões de gases de efeito estufa até 2030.

A compatibilização desses compromissos com a exploração de novas fronteiras petrolíferas é uma questão inadiável. Estimativas apontam que os blocos leiloados podem, em seu ciclo completo, liberar até 10 bilhões de toneladas de CO₂ equivalente, com potencial de impacto de até 29 gigatoneladas – o equivalente a quase sete anos das emissões totais do Brasil. Embora essas projeções devam ser ponderadas dentro de uma estratégia nacional de transição energética, não podem ser ignoradas.

Comunidades indígenas e quilombolas: um desafio a mais

Há ainda um terceiro desafio jurídico e social de grande relevância. Dos 34 blocos ofertados, 12 estão localizados em áreas que sobrepõem territórios de comunidades tradicionais – como quilombolas, ribeirinhos e indígenas – que ainda não foram consultadas formalmente, o que contraria os dispositivos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)¹, ratificada pelo Brasil.

O Cadastro Único (CadÚnico) registra que mais de 80% das famílias quilombolas e ribeirinhas da região vivem com menos de meio salário mínimo per capita. A expectativa de arrecadação de até R$ 30 bilhões em royalties ao longo dos próximos dez anos esbarra na recorrente dificuldade brasileira em transformar a riqueza do subsolo em justiça social. Nos municípios produtores do pré-sal, um pouco mais de 10% dos recursos recebidos a título de royalties foram efetivamente aplicados em áreas essenciais como educação e saúde.

Apesar desses obstáculos, a exploração na Margem Equatorial pode significar uma virada histórica. A Petrobras estima que essa nova fronteira possa dobrar as reservas nacionais. No entanto, os mesmos dados oficiais que sinalizam esse potencial econômico revelam fragilidades estruturais profundas: a maioria das escolas públicas nas áreas de influência dos blocos não têm laboratórios de ciências; quase a metade das gestantes não completam o pré-natal; e a taxa de mortalidade infantil é muito superior à média nacional. Essas são questões candentes que têm que ser prioritárias ao se pensar em desenvolvimento econômico da região.

Penso, como amazônida, e quero o desenvolvimento para a região. Temos que sair do estado de pobreza a que foi condenada a população da região amazônica e do Nordeste, que também poderá ser beneficiada, pois a Margem Equatorial passa pela bacia Pará–Maranhão, Bacia de Barreirinhas, e estende-se até o Rio Grande do Norte. E a exploração da Margem Equatorial pode trazer desenvolvimento para a região. Mas é preciso discutir com profundidade o modelo de exploração.

Países do hemisfério Norte, com fundos soberanos oriundos de receitas do petróleo, demonstram que é possível utilizar recursos finitos para financiar a transição energética e a prosperidade de longo prazo. Já o Brasil, onde quase a metade dos royalties do pré-sal foram destinados ao pagamento da dívida pública, não é possível se aceitar a repetição da lógica extrativista e colonial de exportar matérias-primas e importar desigualdades.

Em 2025, com os olhos do mundo voltados para a Amazônia, o Brasil chegará à COP30 com uma pergunta fundamental: como será a Margem Equatorial em 2055? Será um polo de prosperidade compartilhada ou mais um capítulo da história de promessas não cumpridas?

A resposta começa por tratar o petróleo não como fim em si mesmo, mas como meio – e só terá legitimidade se vier acompanhada de um plano concreto e exequível para converter cada barril extraído em atendimento à saúde, transporte e emprego digno, escolas equipadas, hospitais funcionais, água tratada, saneamento básico, energia para todos, educação de qualidade e infraestrutura para os que hoje vivem com um pouco mais de R$ 700 mensais médios do Bolsa Família, sem acesso a serviços públicos essenciais como saneamento, energia elétrica, telefonia celular e à rede mundial de computadores.

Israel Fernando de Carvalho Bayma foi coordenador do Luz para Todos na Amazônia, diretor de Engenharia da Eletronorte e conselheiro consultivo da Anatel. É advogado e especialista em regulação e assessoria parlamentar.

¹ A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre Povos Indígenas e Tribais, foi adotada em Genebra em 27 de junho de 1989, entrando em vigor no plano internacional em 5 de setembro de 1991. No Brasil, sua aprovação se deu por meio do Decreto Legislativo 143, de 20 de junho de 2002, passando a vigorar internamente a partir de 25 de julho de 2003, data em que o país depositou o instrumento de ratificação junto ao Diretor-Geral da OIT. Posteriormente, a Convenção foi promulgada por meio do Decreto 5.051, de 19 de abril de 2004, sendo atualmente considerada em vigor pelo Decreto 10.088, de 5 de novembro de 2019, que revogou e consolidou normativos internacionais incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro. A Convenção estabelece os parâmetros para o reconhecimento e a proteção dos direitos dos povos indígenas e tribais, incluindo a definição de quem são esses povos e o dever dos Estados de respeitar seus valores sociais, culturais, religiosos e espirituais. Um dos princípios centrais do texto é a obrigatoriedade de consulta aos povos interessados, por meio de procedimentos apropriados e de boa-fé, sempre que medidas legislativas ou administrativas forem suscetíveis de afetá-los diretamente. Tais medidas podem ser de origem pública ou privada, abrangendo obras, ações, políticas ou programas. A Convenção consagra, assim, o princípio da consulta livre, prévia e informada – instrumento essencial para garantir o direito à autodeterminação, à participação e à integridade territorial e cultural desses povos tradicionais.

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