Metanol: ‘Número real de mortes é muito maior que o divulgado’

Para especialista, há mortes cujos sintomas são confundidos com outras causas clínicas; entidades defendem volta do Sicobe, extinto em 2016

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Dose de cachaça (foto de Marcello Casal Jr., ABr)
Dose de cachaça (foto de Marcello Casal Jr., ABr)

Casos de intoxicação por metanol em bebidas adulteradas voltaram a se espalhar pelo país, levantando dúvidas sobre a eficiência da fiscalização, a segurança do consumidor e a dimensão real das mortes causadas por esse tipo de crime. De acordo com o Ministério da Saúde, até o início de outubro foram 24 casos confirmados e 235 suspeitos em investigação, com cinco mortes oficiais e 11 óbitos sob análise. O Estado de São Paulo concentra a maior parte das notificações.

Mas, para a especialista em segurança dos alimentos Paula Eloize, o número real é muito mais alarmante.

“O número de mortes é muito maior do que o divulgado. A maioria das vítimas de metanol morre sem diagnóstico, muitas vezes em casa, com atestados que mencionam infarto, AVC ou falência múltipla de órgãos. Estamos falando de um cenário de subnotificação crônica, que invisibiliza a dimensão dessa tragédia”, afirma.

“Não é acidente, é crime. O metanol não aparece por erro técnico, ele é colocado de forma intencional. Estamos lidando com uma rede criminosa que lucra com a morte de pessoas. E o mais grave é que a resposta social a esse tipo de crime ainda é tímida”, enfatiza Paula Eloize.

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A especialista explica que a subnotificação ocorre por três razões principais: falta de diagnóstico laboratorial, omissão de informações e baixa integração entre saúde pública e polícia científica. Em muitos municípios, não há protocolo padronizado para coleta de amostras suspeitas de metanol, o que leva a subnotificações em larga escala.

“Há mortes que jamais entram nas estatísticas porque não há autopsia, e os sintomas são confundidos com outras causas clínicas. Isso mascara a real dimensão do problema. O que aparece nos relatórios é apenas a superfície de algo muito maior”, explica.

Levantamento do Médicos Sem Fronteiras (MSF) indica que, entre 1998 e 2025, mais de 40 mil pessoas foram intoxicadas e 14,4 mil morreram no mundo em decorrência de bebidas adulteradas com metanol.

No entanto, a própria instituição ressalta que esses dados estão “longe de representar a totalidade dos casos”, especialmente em países da América Latina, África e Sudeste Asiático, onde a informalidade é alta e o controle sanitário é limitado.

“Os bares e restaurantes precisam encarar essa crise como um ponto de virada. É hora de assumir responsabilidade sobre a procedência das bebidas, exigir documentação, rastreabilidade e selos de autenticidade. Quem não fizer isso, corre o risco de perder o cliente, ou algo muito pior”, avalia ela, que também defende que o comércio de bebidas alcoólicas no Brasil entre em uma nova era de transparência obrigatória, com rastreamento digital de garrafas, integração de bancos de dados fiscais e campanhas públicas de esclarecimento.

Para a especialista, a crise do metanol deve ser tratada como um divisor de águas para a sociedade brasileira. Um ponto de inflexão em que consumidores, autoridades e comerciantes precisam assumir novos papéis.

“A sociedade precisa entender que segurança dos alimentos, e das bebidas, é um direito básico. O consumidor tem o direito de exigir rótulos, selos e informações claras sobre procedência. E o bar ou restaurante precisa ser parte ativa da solução, não da cadeia do risco”, conclui.

Sicobe, extinto em 2016, tinha como principal função rastreamento des bebidas

A Federação de Hotéis, Restaurantes e Bares do Estado de São Paulo (Fhoresp) e a Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF) emitiram, na última segunda-feira, nota conjunta, pedindo, entre outras providências, o retorno do Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe), extinto em 2016, e que tinha com principal função o rastreamento das bebidas.

Ambas entidades afirmam no documento que o cenário de intoxicações e de mortes causadas em consequência da contaminação por metanol, nos últimos dias, expõe a fragilidade da fiscalização e compromete a credibilidade do setor de bebidas e de alimentação fora do lar. Além disso, com a crise, segundo a Fhoresp, a queda no movimento de casas noturnas e de bares chegou a 30%, de uma semana para cá, enquanto o consumo de destilados sofreu redução de 50% no período.

A falsificação de destilados cresceu 25,8% entre 2023 e 2024, de acordo com a ABCF, e já atinge 36% das bebidas comercializadas, conforme estudo divulgado pela Fhoresp em abril deste ano.

O Sicobe, criado em 2008 para combater sonegação e adulteração, foi desativado em 2016:

“A ausência de um controle efetivo, como o do Sicobe, facilita a ação do crime organizado e coloca em risco a vida dos cidadãos, o que é inaceitável, e atenta, também, contra o sustento e a geração de empregos em todo o setor de bares e de restaurantes, tão importante para a economia brasileira”, afirmam as entidades em trecho da nota.

Para o diretor-executivo da Fhoresp, Edson Pinto, o momento requer ações imediatas e que envolvam a fiscalização na cadeia produtiva, principalmente no que tange o rastreio das bebidas. Neste sentido, cabe à Receita Federal a decisão de reativar o Sicobe:

“Estamos numa emergência sanitária e agindo no escuro. É preciso que o Brasil retome o sistema de verificação da produção das bebidas desde a origem. Seria uma forma de fechar o cerco contra as falsificações. Não sabemos ainda a dimensão dos lotes contaminados. Contudo, é hora de repensar como o Brasil tem atuado no controle do comércio de bebidas”, considera.

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