Militares e comunistas brasileiros na libertação de Moçambique

A participação marxista e do governo militar na independência Por Beto Almeida

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Bandeira de Moçambique (Foto: Wikipedia)
Bandeira de Moçambique (Foto: Wikipedia)

No último dia 25 de junho, o Colégio Brasileiro de Altos Estudos, da UFRJ, acolheu o evento “Afetos e Memórias: 50 anos da Independência de Moçambique”, um acontecimento político e cultural, emotivo e revelador ao mesmo tempo. Ali, revolucionários comunistas que pegaram em armas para combater a ditadura cívico-militar implantada em 1964 – e que tiveram de amargar anos de exílio – ofereceram depoimentos marcantes sobre a solidariedade brasileira prestada a Moçambique, então dirigido pelo revolucionário marxista Samora Machel. Eles colaboraram na construção de uma nação independente, que buscava superar a terrível herança do colonialismo e também lançar as bases para a superação do tribalismo, em busca de formas estatais socialistas.

O inesperado é que esses comunistas brasileiros, que trabalhavam na solidariedade com a jovem nação independente, também encontraram por lá a presença do Estado brasileiro, já que o governo Geisel – que foi um dos primeiros a reconhecer o governo de Samora Machel – também operava uma política externa terceiro-mundista e progressista, atuando oficialmente para colaborar na construção de novas estruturas estatais, com recursos e quadros, para superar a pesada herança colonial.

Ao lado de comunistas banidos e exilados pela ditadura brasileira, estavam representantes do governo Geisel, na mesma empreitada de apoio ao revolucionário Samora Machel, em prol da superação do atraso colonial.


Comunista marxista no comando da Frente de Libertação de Moçambique

Por 13 anos, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) lutou pela independência do país em relação ao domínio português, o que se concretizou em 25 de junho de 1975. Seu fundador e primeiro presidente foi Eduardo Chivambo Mondlane (1920–1969), que obteve bolsa de estudos para cursar a Universidade de Lisboa, onde travou contato com outros líderes da independência africana: Amílcar Lopes da Costa Cabral (1924–1973, Guiné-Bissau) e António Agostinho Neto (1922–1979, Angola).

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A Frelimo foi criada na Tanzânia por três grupos que lutavam com diferentes orientações políticas e ideológicas – Udenamo (União Democrática Nacional de Moçambique), Manu (Mozambique African National Union) e Unami (União Nacional Africana para Moçambique Independente). Mondlane teve o apoio do nacionalista presidente da Tanzânia, Julius Nyerere, e trouxe para ajudá-lo no comando da Frelimo o marxista Samora Moisés Machel (1933–1986).

Todas as três lideranças independentistas – Moçambique, Guiné-Bissau e Angola – haviam adotado o marxismo como ideologia de luta e projeto de país, e morreram assassinadas. Apenas Agostinho Neto chegou a presidir seu país independente, ainda que por pouco tempo. Em Moçambique, foi Samora Machel quem chegou ao governo. Embora tenha mantido o socialismo na organização e gestão da sociedade, teve de acolher pessoas que haviam formado, com pensamentos diversos, o movimento de libertação Frelimo.


Tenentistas assumem a cabeça do governo militar

O Brasil vivia um segundo período do governo militar, com o golpe dentro do golpe aplicado por Artur da Costa e Silva (1899–1969) na sucessão de Humberto de Alencar Castelo Branco (1897–1967), em 1967. Se Castelo Branco fora a escolha dos Estados Unidos da América (EUA) para manter a colonização do Brasil, Costa e Silva, mesmo conservador e anticomunista, tinha formação no movimento tenentista, muito influenciado pelo positivismo gaúcho que ganhara a oficialidade brasileira nos anos 1920. Da mesma origem eram seus sucessores: Emílio Garrastazu Médici (1905–1985) e Ernesto Geisel (1907–1996).

A África Portuguesa se transformava com a queda da ditadura salazarista, conhecida como Revolução dos Cravos, em abril de 1974, impulsionada pelas lutas de libertação nas colônias portuguesas – justamente quando Ernesto Geisel assumia a presidência do Brasil, em 15 de março de 1974.

Geisel havia atuado na consolidação da Revolução de 1930 como secretário da Fazenda da Paraíba e no combate à chamada “Revolução Constitucionalista” de 1932, em São Paulo. Na década de 1950, foi superintendente da refinaria da Petrobras em Cubatão, São Paulo.

Tratando-se de atuação brasileira no estrangeiro, é importante conhecer a gestão da política externa executada pelo Ministério das Relações Exteriores. Durante o governo Médici, o embaixador Mário Gibson Barboza (1918–2007) denominou sua gestão de “diplomacia do interesse nacional”. Embora mantivesse estreitos laços com os EUA, ampliou as relações brasileiras com países árabes (o preço do barril de petróleo aumentara, e o Brasil era grande importador) e realizou uma viagem pioneira a nove países da África Ocidental, mantendo, contudo, absoluto silêncio em relação às colônias portuguesas.

A situação mudou com a presidência de Geisel. O ministro Antônio Francisco Azeredo da Silveira adotou o “pragmatismo responsável e ecumênico”, o que levou o Brasil a ser o primeiro país a reconhecer o novo governo português ao fim do salazarismo, estabelecer relações diplomáticas com os Emirados Árabes Unidos e Omã (pela necessidade de petróleo), reconhecer as independências de Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, apoiar o ingresso dessas ex-colônias na ONU e iniciar relações diplomáticas com a República Popular da China.

Todas essas ações levaram o secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger (entre 22 de setembro de 1973 e 20 de janeiro de 1977), a viajar para o Brasil para dar um “puxão de orelha” em Geisel, alertando-o para o desconforto que suas medidas causavam em Washington. Geisel simplesmente respondeu que os temas trazidos por Kissinger não constavam da agenda da visita. Muitas das críticas negativas feitas a Geisel surgiram nos EUA como consequência dessa frustrada visita.


‘Out of records’

O Brasil teve um grande embaixador, Ítalo Zappa, fundamental para a transformação do Itamaraty de mero “menino de recados” dos interesses estrangeiros em ator importante no cenário internacional. Ele foi decisivo na consolidação das relações internacionais durante a gestão de Azeredo da Silveira, continuidade mantida no governo Figueiredo com o embaixador Ramiro Saraiva Guerreiro.

Aprovado por Geisel, ainda no período da luta pela libertação em Moçambique, Zappa se encontrou secretamente, em acampamento guerrilheiro, com Samora Machel para lhe oferecer ajuda, que se concretizou com a independência.

Essa foi uma das revelações preciosas trazidas ao emotivo evento, que contou com a participação do ex-ministro de Samora, José Luiz Oliveira Cabaço, pela voz insuspeita da filha do embaixador Ítalo Zappa, a jornalista Regina Zappa.

Outra contribuição importante foi a do jornalista Oswaldo Maneschy, que foi assessor de Zappa na Embaixada brasileira em Maputo. Ele revelou a forma ética e disciplinada de atuação do embaixador, um ser político em plenos pulmões, imbuído da missão que lhe confiara o governo Geisel: brindar às novas nações africanas independentes a presença estatal brasileira.

Essa solidariedade também se verificou ao ser o Brasil o primeiro país a reconhecer o governo do MPLA, em Angola, e a oferecer suprimentos para aquele país quando o território angolano estava ocupado pelo Exército do regime do apartheid da África do Sul. Lá também estavam tropas solidárias de Cuba, apoiadas pela URSS. Essa era a razão da bronca de Kissinger contra Geisel, rechaçada pelo brasileiro. Uma verdadeira multipolaridade avant la lettre.

Ítalo Zappa foi também nomeado, em 1986, o primeiro embaixador brasileiro em Havana após a Revolução Cubana de 1959. E também foi encarregado, pelo governo Geisel, de traçar as linhas para o reatamento das relações do Brasil com a República Popular da China.


Percepções e interpretações: a chegada da ideologia neoliberal

A invasão ideológica neoliberal provoca uma avalanche de males que a sociedade brasileira sente, se incomoda, se revolta, mas não consegue identificar corretamente, devido ao domínio da comunicação de massa e até mesmo de uma instrução colonizadora.

Analisemos esse parágrafo anterior: se houve invasão, é porque, até então, não era a ideologia neoliberal que dominava o Brasil. E quando essa ideologia chega ao Brasil? Com o fim do governo Geisel.

João Baptista de Oliveira Figueiredo (1918–1999) foi imposto ao presidente Geisel pelas finanças apátridas, com a ameaça de transformar o Brasil no terror dos capitais estrangeiros, como um péssimo pagador, caloteiro, um cliente indesejável.

E o Brasil havia atingido um nível de desenvolvimento industrial com demanda de 1,2 milhão de barris de petróleo por dia, produzindo apenas 200 mil. O milhão de barris custava, cada um, cerca de US$ 80. Ou seja, o Brasil precisava de 80 milhões de dólares diários apenas para continuar vivendo.

Quem era João Figueiredo? Filho de Euclides de Oliveira Figueiredo, também militar, que lutara contra Ernesto Geisel em 1932, quando os capitais paulistas, apoiados pelas finanças inglesas, resolveram, sob o pretexto de uma Constituição em elaboração, destituir o presidente interino da Revolução de 1930, Getúlio Vargas.

O que a sociedade brasileira também sente, de forma difusa, sem compreensão objetiva, é o desemprego, a miséria e a fome. Onde está sua origem? Em duas importações do neoliberalismo: a substituição do Estado pelo “mercado” e o fim das garantias do trabalho e do próprio trabalho contratado. Todos se tornam empreendedores privados, lançados à própria sorte, com ou sem capital. Criou-se, com os microempreendedores individuais (MEIs), um capitalismo sem capital – o chamado “uber”.

Vivemos um verdadeiro retrocesso civilizatório, se compararmos o Brasil da “redemocratização” com o Brasil da Era Vargas, apesar dos altos e baixos entre 1954 e 1979.

Concluímos com um trecho do prefácio que o criador do Proálcool, assessor do presidente Geisel, professor e cientista brasileiro José Walter Bautista Vidal, escreveu para o livro Globalização versus Desenvolvimento, do embaixador gaúcho Adriano Benayon:

(Há) muitas outras evidências do retrocesso brasileiro, as quais encaminham a Nação para a ruína, com risco de transformá-la em vil protetorado do chamado ‘governo mundial’, submetidas no livro do professor Adriano Benayon a profundo e detalhado exame, inclusive de natureza comparativa com outros países, tanto no campo teórico como nas políticas de execução. Estas comprovam o desastre que têm representado os resultados dos investimentos externos, dos nunca esclarecidos empréstimos – que construíram uma gigantesca e impagável dívida – e do controle das finanças nacionais por um sistema internacional espúrio, de moeda falsa.


Militares, comunistas e Moçambique: superando a bipolaridade limitada

Noite Moçambicana, que trouxe emoções e lágrimas ao Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ, regada a músicas entoadas por João Prestes, neto de Luiz Carlos Prestes, e também por depoimentos da professora e jornalista Beatriz Bíssio, que entrevistou Samora Machel em Maputo, para o inesquecível Cadernos do Terceiro Mundo – publicação essencial, que não recebeu da Secom do governo Lula o apoio que merecia para seguir existindo –, foi também marcada pelo testemunho do administrador Pedro Augusto Pinho, enviado pela Petrobras para ajudar a montar a estatal petroleira moçambicana, a EIH.

Esse evento traduz-se, na verdade, em uma aguda convocação para que as forças progressistas brasileiras discutam com mais rigor as fases e nuances do período ditatorial brasileiro, pois episódios como os ali revelados não podem ser compreendidos e dimensionados corretamente sem a utilização de uma análise dialética, que supera constatações de uma bipolaridade limitada.

Beto Almeida, jornalista, é conselheiro da ABI.

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