Momentos reveladores das transições civilizacionais

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Bolsa de Valores (Foto: divulgação)

O esgotamento do capitalismo dominado pelas finanças apátridas

 

A história das sociedades humanas mostra momentos de transição nem sempre compreendidos quando ocorrem. Muitas vezes estes sinais só chegam aos cronistas séculos depois das ocorrências.

Diversas são as causas. A construção de estradas pelo Império Persa é apontada como condição de sua expansão pela rapidez na comunicação. Creio que Heródoto, a quem se atribuem muitas narrativas da história antiga, registrou que as estradas persas possibilitavam superar as condições climáticas, acidentes naturais, dia e noite, na condução das mensagens. Isso deu aos persas o poder para se tornar o grande império de seu tempo, dos maiores na antiguidade.

Se pensarmos que as mensagens seguiam pelas pernas dos homens, não nos surpreenderemos dos tempos para aplicação das tecnologias, que o extremo oriente, por exemplo, desenvolveu antes de serem aplicadas no ocidente. E assim pode-se também acompanhar a mudança da origem do poder: a força física, a terra, a engenhosidade, a organização social, o capital etc.

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Há sinais bastante nítidos que o mundo passa por momento de transição. O esgotamento do capitalismo dominado pelas finanças apátridas veio com a rapidez das comunicações instantâneas dos tempos atuais.

Há 30 anos surgia o “fim da história” para marcar o poder financeiro global e as novas condições da vida social. Hoje, em 2023, este poder não se mantém nem mesmo pelas armas, como ficou evidente no Afeganistão, está sendo demonstrado na Europa, e na luta interna, na própria pátria de seu decálogo: o Consenso de Washington.

Os séculos da construção do renascimento, transformando a Europa e se expandindo pelo mundo, se resumem, agora, em somente três décadas. Porém não se deve apenas à rapidez das mensagens, mas ao conjunto de saber que esta comunicação disponibilizou para grande número de pessoas e as trocas que se dão instantaneamente.

É possível recuperar princípios e ideais enunciados há séculos, como os apresentados por Johann Gottlieb Fichte, em 1796/1797, no “Fundamento do Direito Natural Segundo os Princípios da Doutrina da Ciência” (Grundlage des Naturrechts nach Principien der Wissenschaftslehre). Em certo sentido, a multipolaridade, que é proposta para substituir a unipolaridade financeira globalizante, já pode ser encontrada nesta citada obra de Fichte, o que demonstra o amadurecimento de mais de dois séculos do capitalismo e a precedência da política na sociedade humana.

Roma já enunciava que o direito individual não pode se sobrepor ao social, Fichte “colocava a interação intersubjetiva fundamental para o homem poder se formar na vida ética, e, assim, realizar seu destino (Bestimmung) – o que propomos aqui chamar de política lato sensu. Sendo assim, a política, segundo os princípios da Doutrina da Ciência, definiria não apenas uma ciência (ou técnica), senão muito mais uma prática ou arte (Kunst) de viver em sociedade” (Marco Rampazzo Bazzan, “A política segundo os princípios da Doutrina da ciência”, Revista de Estud(i)os sobre Fichte [Online], 21 | 2020).

Onde Fichte (1762–1814) avança, inclusive sobre seu antecessor Jean-Jacques Rousseau (1712–1778), na questão contratual, é na formação cognitiva universal, na compreensão de todos para elaboração dos contratos.

Podemos, então, afirmar que nas condições tecnológicas de hoje, a existência da boçalidade vista na manifestação de domingo, 8 de janeiro de 2023, em Brasília, seria fruto do mais retrógrado pensamento iluminista; da possibilidade de extrairmos unicamente de nossa própria razão a norma de conduta que nos orienta, isto é, próprio da falácia neoliberal. Vejamos de modo mais amplo as razões desta irracionalidade.

O ser humano não é constituído de alma imortal nem de condições imutáveis pelo mundo. Ele é fruto das realidades materiais que o cercam, das abundâncias e da escassez dos bens indispensáveis à vida corporal. O “cunhadismo”, analisado pelo gênio de Darcy Ribeiro nos índios brasileiros, só era possível pela imensa abundância de recursos existentes no Brasil, recursos hídricos, vegetais, animais, por toda parte.

Ainda não houve antropólogo que estudasse a África ancestral, com o zelo de Darcy Ribeiro para os brasileiros. No entanto, os franceses R. Portères e J. Barrau (“Origens, desenvolvimento e expansão das técnicas agrícolas”, in História Geral da África, I. Metodologia e pré-história da África, Ática/Unesco, SP, 1982) assim analisaram as origens da agricultura africana:

“É evidente que as origens, a diversificação e o desenvolvimento das técnicas agrícolas estavam estreitamente relacionados às condições do meio ambiente (clima, hidrografia, relevo, solos, vegetação, tipos de plantas originariamente utilizadas e alimentos que forneciam etc.). Embora esses fatores tenham desempenhado um papel importante, até mesmo preponderante, na origem da agricultura e da criação de animais, não foram os únicos a interferir, pois esses implicavam também fatos de cultura e civilização”. “Os homens nas migrações ou deslocamentos carregavam também toda uma série de atitudes e comportamentos criados a partir de suas relações com a natureza em seus habitats de origem”.

Se a agricultura e a criação de animais foram a mudança fundamental que constituiu a sociedade humana, e esta foi distinta até mesmo nos continentes, como os citados estudiosos apontam para a África, berço da humanidade, não há porque globalizar o que tem origem individualizada. O pluricentrismo, social e político, é a consequência óbvia da cultura humana, plural, diversa, rica em suas manifestações. O que o neoliberalismo propõe é a pasteurização da vida e dos relacionamentos, obviamente para um controle único e totalitário.

 

O macaqueamento do Oito de Janeiro

Por mais verde e amarelo que houvesse nas manifestações do domingo da vergonha, ele não era brasileiro, era global, idêntico aos exemplos estadunidenses, ucranianos, kosovares, paquistaneses e tantos outros influenciados pelo neoliberalismo e pelo financismo econômico. E, como ocorre em todo mundo, financiados por capitais apátridas, unicamente voltados à concentração de bens e rendas.

A repressão aos manifestantes, financiadores e indutores é condição de segurança pública, não pode ser descuidada nem tolerada. Há evidente envolvimento da cúpula militar e de recursos estrangeiros. Estes devem sofrer as represálias do Estado Brasileiro.

De início é indispensável a compreensão e coerência do interesse nacional. Ele é superior à filiação partidária e ao envolvimento político. Há verdadeiros nacionalistas em todo espectro das opções políticas, e esta qualidade é fundamental para conduzir todos os níveis do Estado Nacional Brasileiro. Um neoliberal financista é, por definição, um inimigo do Estado e, sendo o Estado o contrato dos brasileiros entre si, inimigo do povo brasileiro.

Podemos e devemos, didaticamente, distinguir dois grupos de ações do Estado: aquelas voltadas para Soberania e as dirigidas à Cidadania. Em ambas há ações exclusivas do Estado, quer pela segurança que ele se obriga garantir a todo território e aos habitantes do Brasil, quer pela democracia, pelo tratamento igual a todos os brasileiros.

No primeiro caso, o exemplo mais evidente é a energia. Sem controle da produção, transmissão, fornecimento, pesquisa e apropriação tecnológica das energias, o Estado é fraco, incapaz de se defender e aqueles que dele esperam proteção. Donde a energia não é possível ser entregue ao “mercado”, como a falácia neoliberal divulga continuamente, fazendo verdade a conhecida expressão do escritor parisiense Pierre Beaumarchais: caluniai, caluniai, sempre fica alguma coisa.

Na Cidadania, a educação, a saúde, a garantia dos direitos são funções do Estado, que as proporcionará a todos como o ensino na constituição castilhista de 1891: laica, grátis, livre e por todo território nacional. Não pode existir cidadania condicionada, como as entendem e fornecem os cultores, defensores e aproveitadores do privatismo.

Os problemas da fome, da miséria, da escravidão do desemprego são, sem dúvida, da maior urgência nas prioridades do Estado Brasileiro após a onda destruidora que se seguiu ao golpe jurídico-parlamentar de 2016. Mas devem ser atendidos já focando as questões da Soberania e da Cidadania, estruturando instituições, provendo recursos, para que não seja mera política governamental, mas a solução de uma questão nacional.

O jovem e brilhante acadêmico Felipe Maruf Quintas, em seu Desenvolvimento e Construção de Nações (Clube de Autores, 2022), trazendo o professor e político estadunidense Lyndon LaRouche (1922–2022) ao debate contemporâneo escreve: “LaRouche deblaterou contra o malthusianismo, que ele entendeu, muito corretamente, estar na base tanto do neoliberalismo quanto do ambientalismo patrocinado por grandes organismos transnacionais como o Clube de Roma. O malthusianismo seria a naturalização de uma visão econômica antidesenvolvimentista, que seria tecnicamente falsa, já que ‘o crescimento da população humana desde 1798 prova que o homem pode fazer com que os meios para satisfazer níveis crescentes de necessidade per capita cresçam mais rapidamente do que o crescimento geométrico da população’, citando Não há limites para o crescimento (Dois Pontos, RJ, 1986), do estadunidense.”

Combater as ações e depredações, as usurpações e agressões físicas e morais ao patrimônio e ao povo brasileiro é questão indiscutível e necessária, indo até aos mandantes, ideológicos e orientadores, aos facilitadores e impulsionadores, materiais e imateriais ou virtuais. Porém a eliminação de atitudes grotescas e fantasiosas, como o pedido de ajuda extraterrena, só se resolve com educação e comunicação. E disso temos tratado em diversos artigos.

Há que se estabelecer como meta de Estado a existência em todos os distritos, em todos os bairros do Brasil, no mínimo uma escola fundamental, acolhendo brasileiros dos 3 aos 18 anos, em horário integral, não só para o preparo técnico com que enfrentará a vida adulta, mas com a consciência da cidadania brasileira, com o sentimento cívico do dever que lhe impõe a nacionalidade, da vontade de participar nos processos decisórios do País com seu voto e sua inteligência.

Caso contrário, após o período prisional, estas pessoas e outros imbecis ou mal orientados, ignorantes do que é ser brasileiro, considerando o globalismo e o rentismo o novo normal, voltarão a cometer os mesmos atos, receber os mesmos recursos e repetir as mesmas sandices.

 

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado, atual presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (Aepet).

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