Quero começar este texto com uma saudação à decisão corajosa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de ampliar a Tarifa Social de Energia Elétrica para os mais de 60 milhões de brasileiros. Essa medida trará isenção de pagamento de tarifa de energia elétrica para famílias de baixa renda que consumam até 80 quilowatts-hora (kWh) por mês. Os beneficiários são famílias do CadÚnico com renda mensal de até meio salário mínimo per capita, idosos com Benefício de Prestação Continuada (BPC) e famílias indígenas e quilombolas do CadÚnico.
Atualmente, a isenção completa do pagamento em caso de consumo de até 50 kWh vale para indígenas e quilombolas, enquanto os idosos com BPC e as famílias do CadÚnico têm direito a descontos escalonados de até 65%, caso o consumo seja menor que 220kWh. Entusiasmado, avalio que é uma medida urgente e profundamente justa que reafirma o compromisso social de um governo que conhece, de perto, a realidade das famílias mais pobres. É uma ação digna de reconhecimento público e de aplauso institucional.
Memória do Luz para Todos
Tenho autoridade para afirmar isso. Conheci a pobreza e a exclusão elétrica no Maranhão, onde fui engenheiro por mais de 20 anos e vi de perto milhares e milhares de famílias vivendo na total escuridão. Tanto nas comunidades originárias, quilombolas de Itamatatiua, próxima à Base Aérea Alcântara, quanto nas comunidades de trabalhadores rurais da região de Barreirinhas, próximas ao festejado Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses.
Fui coordenador do Programa Luz para Todos na Amazônia Legal, nos difíceis anos de 2003 a 2005, quando as empresas distribuidoras de energia resistiam ao Programa alegando que não haveria retorno econômico. Insistimos. Executamos. Persistimos. Hoje, são essas mesmas elétricas que colhem os frutos do crescimento de mercado proporcionado pela universalização da energia elétrica. E agora essa MP lhes traz o mercado livre de seus consumidores regulados e cativos.
O Luz para Todos, com mais de 17,3 milhões de brasileiros beneficiados e mais de 3,6 milhões de ligações realizadas, continua sendo o maior programa de universalização de energia elétrica do mundo – e um legado estrutural do primeiro mandato do presidente Lula.
A MP 1.300/2025
Dito isso, é com preocupação que recebi a Medida Provisória 1.300/2025, que antecipa a abertura do mercado livre de energia para os consumidores residenciais a partir de 2027.
Mas a MP faz mais do que isso. Ela altera importantes normas que regem o setor elétrico brasileiro, como a Lei 9.074, que estabelece normas para outorga e prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos, a Lei 9.427, o marco regulatório do setor elétrico, e a Lei 10.438, que cria a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) e dispõe sobre a universalização do serviço público de energia elétrica.
Embora o governo reforce a ideia de liberdade de escolha e redução tarifária, a proposta pode estar pecando pela ausência de salvaguardas regulatórias e pela fragilidade do planejamento de transição. Essa liberdade, sem proteção, pelo menos para os consumidores residenciais e pequenos comerciantes, pode virar armadilha.
Assim, a MP estabelece que, a partir de agosto de 2026, indústrias e comércios poderão migrar para o mercado livre, seguidos pelos demais consumidores (incluindo residenciais) em dezembro de 2027. A medida prevê:
• Fim do monopólio das distribuidoras na contratação de energia, permitindo que consumidores residenciais escolham fornecedores e fontes (solar, eólica, hidrelétrica etc.);
• Criação de um ambiente de concorrência, similar ao setor de telecomunicações (sic!);
• Redução tarifária estimada em 23% para consumidores que migrarem, baseando-se no atual diferencial entre mercados livre e regulado.
Riscos da MP 1.300
A comparação com telecomunicações é problemática. Enquanto telefonia e internet operam em infraestrutura virtualizada, a energia depende de redes físicas (linhas de transmissão) controladas por poucas empresas. Assim, a “liberdade de escolha” pode ser limitada por:
• Barreiras geográficas: Nem todas as fontes (ex.: eólica offshore) estão disponíveis em todas as regiões;
• Assimetria de informação: Consumidores residenciais terão dificuldade para comparar contratos complexos, favorecendo grandes players.
A redução de 23% nas tarifas, embora válida para grandes consumidores atuais (80 mil), não é garantida para residências. No mercado livre, preços variam conforme a oferta/demanda e custos de contrato, o que pode gerar instabilidade para famílias de baixa renda.
Efeitos da MP 1.300
A migração de consumidores para o mercado livre pode esvaziar a base de clientes do mercado regulado, majoritariamente composta por residências e pequenas empresas. Como a tarifa social e subsídios da CDE são financiados por esse grupo, uma redução na base de contribuintes pode:
• Aumentar a pressão tarifária sobre os que permanecerem no mercado regulado;
• Agravar a inadimplência, já que famílias vulneráveis (dependentes da tarifa social) não terão recursos para migrar ou negociar contratos vantajosos.
A MP 1.300/2025 não resolve a sobrecarga da CDE, que continuará a ser financiada por consumidores do mercado regulado. Com a abertura do mercado livre, espera-se que:
• Grandes consumidores (indústrias) migrem primeiro, reduzindo sua contribuição à CDE e transferindo custos para residências;
• A tarifa social se torne ainda mais insustentável, pois sua base de financiamento encolherá, enquanto a demanda por subsídios permanecerá alta.
Ilusão
Isso pode criar um ciclo perverso: quanto mais consumidores migrarem para o mercado livre, mais caro ficará para os que permanecerem no regulado, aumentando a desigualdade. O cronograma de implementação (2026-2027) pode querer garantir uma transição ordenada, mas, a meu ver, ignora desafios críticos:
• Capacidade de infraestrutura: a rede elétrica atual não está preparada para gerenciar múltiplos fornecedores e fontes intermitentes (ex.: solar e eólica);
• Regulação insuficiente: a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) carece de mecanismos para fiscalizar abusos em contratos residenciais;
• Despreparo do consumidor: a maioria dos consumidores residenciais não possui conhecimento técnico para escolher entre fontes ou entender cláusulas contratuais.
Recomendações
No meu entendimento, para que a abertura de mercado seja legítima e benéfica, é preciso agir com cautela:
• Reformar a CDE e desvincular seus subsídios da tarifa, financiando-a por tributos progressivos;
• Criar modalidades de tarifa social no ambiente livre, obrigando comercializadoras a ofertarem pacotes subsidiados;
• Estabelecer um programa nacional de educação energética, com linguagem acessível, simuladores de contratos e assistência técnica gratuita;
• Investir em redes inteligentes, capazes de lidar com microgeração e resposta à demanda.
Conclusão
A história nos ensina que o Estado tem papel decisivo na inclusão energética. O Luz para Todos levou luz onde o mercado não tinha interesse. Hoje, milhares de comunidades rurais, principalmente, produzem, estudam e trabalham graças àquela decisão política corajosa.
O mercado livre pode ser uma ferramenta útil. Mas, sem regulação robusta e justiça tarifária, ele pode aprofundar desigualdades, desorganizar o setor e penalizar os mais frágeis. O governo Lula tem a chance de liderar não só a modernização, mas também a humanização do setor elétrico. A liberdade de escolha, quando bem orientada, pode ser emancipadora. Quando capenga, pode ser apenas mais uma forma de exclusão.
Israel Fernando de Carvalho Bayma é engenheiro eletricista/eletrônico e advogado; foi coordenador do Programa Luz para Todos entre 2003 e 2005 e diretor de Engenharia da estatal Eletronorte (2003–2005).