Difícil encontrar alguém que não tenho visto e sido impactado pela foto de Márcia Foletto, 15 dias atrás, na Ladeira dos Tabajaras, em Botafogo, no Rio de Janeiro. O registro preciso, chocante e de sensibilidade aguçada da premiada fotógrafa ilustrou as capas de O Globo e da Folha de S. Paulo – os policiais de arma em punho, carregando um cadáver na frente de uma criança com os olhos cobertos pela irmã adolescente de 13 anos. Impossível passar incólume diante de cena tão perturbadora.
Márcia trabalha há 34 anos no jornal carioca e cumpre à risca o ensinamento do fotojornalista Hélio Campos Mello, que cobriu a Guerra do Golfo e, em 1991, foi sequestrado, junto com o repórter William Waack, pelas forças de Saddam Hussein: “Se você for corajoso demais acaba morto; se for medroso demais, não faz o trabalho direito”.
É triste constatar que o conselho de Hélio serve tanto para Márcia nas favelas cariocas quanto para Felipe Dana, na Ucrânia, ou Gabriel Chaim, na Síria. Os dois fotojornalistas brasileiros que cobrem guerras na Europa e no Oriente Médio precisam tomar os mesmos cuidados que a fotógrafa do Globo.
Os laureados trabalhos de Dana e de Chaim são retratados na minissérie documental Câmera entre Balas, disponível na Max/HBO. Os depoimentos e os registros desses dois fotojornalistas se juntam aos de outros seis intimoratos fotógrafos que dedicam suas vidas a cobrir conflitos pelo mundo: o venezuelano Alejandro Cegarra, a brasileira Adriana Zehbrauskas, o mexicano Narciso Contreras e os espanhóis Samuel Aranda, Anna Surinyach e Sandra Balsells.
Em oito episódios de menos de 30 minutos, acompanhamos um pouco da rotina desses profissionais no Iraque, na Ucrânia, na Síria, no Iêmen, nos Bálcãs, na Venezuela, no Brasil, no México, na Líbia e na travessia do Mediterrâneo, entre outros locais em situações extremas de conflito.
Todos os profissionais entrevistados, alguns deles premiados com o Pulitzer, são unânimes em reconhecer que é impossível não ser atingido pelo sofrimento que suas lentes testemunham. Em um dos episódios mais emocionantes, Anna Surinyach conta um pouco de sua experiência trabalhando ao lado da equipe dos Médicos Sem Fronteiras, registrando os barcos com imigrantes à deriva no Mediterrâneo. A possibilidade de morrer afogado de madrugada no meio do oceano é menos assustadora do que permanecer em um país assolado pela guerra, fome e ausência de perspectivas.
As fotos de Surinyach são de cortar o coração, mas, ao menos com elas, a fotógrafa tem uma pequena esperança de transformar a realidade por meio da sensibilização. É essa confiança que mantém a maioria dos fotojornalistas diariamente em busca de um registro sempre melhor do que o anterior. A realidade precisa ser mostrada – e, como disse certa vez o artista gráfico americano Milton Glaser, “é difícil fazer as pessoas prestarem atenção no que é invisível”.
Lee Miller, uma precursora que o cinema ajuda a eternizar
Mesmo com enormes dificuldades e correndo perigo de vida cada vez que se arriscam a registrar a realidade em uma zona de conflito, os oito personagens do documentário Câmera entre Balas tiveram os caminhos desbravados por profissionais pioneiros como a americana Lee Miller.
Aos 37 anos, fotógrafa da revista Vogue em Londres, ela se voluntariou para cobrir a Segunda Guerra Mundial. Partiu com sua Rolleiflex dependurada no pescoço e – ao lado do repórter fotográfico da Life David Scherman – foi incorporada a uma Divisão de Infantaria do Exército americano três dias depois do desembarque dos Aliados na Normandia, em junho de 1944.
Ela se tornava então correspondente da Vogue na Europa sitiada e a primeira mulher fotógrafa no front. Miller registrou cenas da batalha de Saint-Malo, os hospitais de campanha na Normandia, a libertação de Paris pelos Aliados e, o mais sofrido, os campos de concentração em Buchenwald e Dachau, ambos na Alemanha. Até hoje, suas fotos do extermínio judeu são referência no meio.
A história de bravura e vanguarda dessa fotógrafa é contada de forma emocionante no filme Lee, dirigido por Ellen Kuras e disponível na Amazon Prime desde o mês passado. Kate Winslet interpreta a personagem do título de forma exuberante e, pela sua entrega ao papel, foi indicada ao Globo de Ouro deste ano. Acabou perdendo o prêmio para a nossa Fernanda Torres, mas seu trabalho dá ainda mais valor ao protagonismo de Lee Miller. Ela faleceu de câncer aos 70 anos, em 1977, mas não tenho dúvidas que, se viva fosse, estaria hoje orgulhosa do trabalho de Márcia Foletto e dos oito personagens da minissérie aqui celebrada. Vida longa os nossos bravos repórteres que diariamente saem com o objetivo de transformar a dura realidade por meio da linguagem universal da fotografia.
Serviço: para quem quiser ler um pouco mais sobre a vida de Lee Miller, recomendo o perfil escrito pela monumental Dorrit Harazim. São 12 páginas que fazem parte do livro O Instante Certo (Companhia das Letras, 2016), uma coletânea de textos deliciosos da jornalista sobre fotografia.