O genial Darcy Ribeiro (O Dilema da América Latina, 1971, México) afirma que “o mais grave (da dominação) é que se exerce desde o interior de nossas sociedades”. São construções seculares, que a estadunidense, sempre apontada principalmente para nós, latino-americanos, é apenas a mais recente.
Podemos colocar esta tentativa homogeneizadora no raiar das organizações sociais, a partir da expansão do homem africano, de quem somos descendentes, ocupando todos os continentes.
As primeiras organizações sociais ocorreram, como se pode facilmente concluir, nas margens dos rios. Cronologicamente, ocorreram no Egito, ao longo do rio Nilo, a seguir na Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates, e, o terceiro conjunto, no extremo leste da Ásia, junto à foz do rio Amarelo, onde hoje estão as províncias chinesas de Hebei e Shandong, os “Zhou”.
Os caminhos trilhados por estas aglomerações e as que dela se seguiram foram condicionados principalmente pelas condições geográficas de onde se instalaram. Ali surgiam os desafios que podiam ser as montanhas, os próprios rios, a condição do solo, os animais, enfim a natureza e o clima do lugar. Dos modos de enfrentar estes desafios, surge a cultura que aquele grupo humano irá desenvolver, e, obviamente, das prioridades para garantir a sobrevivência e o conforto de suas vidas.
Entre os povos mesopotâmicos estavam os assírios, babilônios, arameus, cananeus e fenícios. Entre os cananeus surgiram os semitas, dos quais se constituíram os hebreus.
Naquele momento histórico, as civilizações se destacavam, no Oriente Médio, pela força das armas ou pelo comércio. Os hebreus formavam povo pequeno, entre os poderosos egípcios e os demais sumérios e os hititas. Talvez para se impor diante daqueles e para se valer para si mesmos, criaram um Deus só para eles, Jeová, que lhes deu força. Constituíram o primeiro povo monoteísta.
O mundo europeu ainda estava por se formar. Mas a unidade conseguida por ser “o povo escolhido” permitiu a continuidade e a permanência da identidade judaica. Puderam, assim, suportar as diásporas sem perder a fé e seus costumes.
Por que está identidade tão forte não os levou a constituírem um povo solidamente nacionalista, ainda não há como saber.
Os judeus têm seu livro sagrado, a Torá, que constitui o Pentateuco da Bíblia dos Cristãos, e o Talmud, espécie de hermenêutica e exegese elaboradas por séculos, para melhor aplicação dos conteúdos da Torá, formando verdadeiro repertório de jurisprudências e modos de ser e pensar judaico.
No entanto, a proximidade dos judeus com o mundo das finanças, que buscam a globalização, os transformou em universalistas, quando se esperaria a postura nacionalista. Isto os coloca em contradição com suas realidades específicas, não globais, como, exemplificando, a de só existir, para o Estado de Israel, o casamento religioso.
Mundo unipolar e as contradições históricas
A agressão à Rússia pelo complexo industrial-militar do Atlântico Norte, usando o golpe “Euromaidan”, a Primavera Ucraniana, em 2013/2014, para ter o pretexto bélico, resultou no mais amplo fracasso – militar, econômico, social e político – da Europa Ocidental (Alemanha, Bélgica, França, Países Baixos, Reino Unido e Suécia).
O mundo unipolar financeiro colocou até em declínio sua moeda única: o dólar estadunidense, o que dizer da descendência, o euro.
A União Europeia (UE) lembra o provérbio: quando em casa não há pão, todos brigam, ninguém tem razão.
O presidente francês vem ao Brasil para que a França, não a UE, tenha parte do butim Amazônico.
A Europa vê com pessimismo o futuro, não apenas pela recessão, pelo desemprego, pela falta de produtos nas prateleiras dos mercados, por greves e manifestações das mais diferentes classes profissionais, agricultores, operários, funcionários públicos, faxineiros, como pelo avanço político da extrema direita.
No entanto, parece aceitar o esfacelamento a qualquer reação nacionalista. Isso pela sujeição dos poderes europeus, onde as famílias aristocráticas ainda são financeiramente importantes, a ponto de colocarem na presidência da França um empregado da família de banqueiros Rothschild, e trabalharem para o esquecimento do Presidente Charles De Gaulle.
Situação parecida vive o Brasil, que defende a juristocracia, os centrões parlamentares, pressionam Lula para soluções financistas, e aproveitam qualquer oportunidade para desconstruir a imagem do “ditador” presidente nacionalista Ernesto Geisel.
Dois países, que sofrem permanente ataque das comunicações controladas globalmente pelas finanças, se destacam na construção do mundo multipolar: a Rússia e a China.
Iniciemos entendendo a República Popular da China (China).
Como já adiantamos, os homens que constituiriam o chinês, os “han”, formaram os primeiros núcleos populacionais no leste da China, junto ao mar Amarelo. Na travessia da Ásia, os futuros chineses foram se modificando fisicamente e enriquecendo seus conhecimentos, não apenas para sobrevivência, mas para construção da sociedade. A proporção de pessoas instruídas sempre foi inferior ao das incultas. No entanto, dados históricos comprovam que, na China, esta proporção de instruídos sempre foi superior à encontrada no Ocidente, embora os alfabetos ocidentais exigissem menos esforço cognitivo do que o mandarim.
Também a China desenvolveu a agricultura nas planícies e nos vales, de modo mais “ecológico”, preservando as montanhas e limitando a criação de animais ao indispensável para as necessidades. De acordo com Jacques Gernet (Le Monde Chinois, 1972): “A Ásia Oriental é a única parte do mundo onde existe esta tão nítida distinção entre o mundo dos pastores e o mundo dos agricultores; o que bastaria para assinalar a originalidade chinesa e as opções que caracterizariam sua civilização.”
Este sinólogo francês, Jacques Gernet (1921-2018), chama atenção para duas características da formação da civilização chinesa: a preeminência da função política e a ausência da subordinação humana à divina, comum a todas demais civilizações. “O poder político foi entendido na China como princípio vivificante e regularizador. Lá a opressão nasce com a ideia de correção”, como se lê em Os Analectos, de Confúcio.
Também a civilização chinesa é a civilização da criatividade, daquela que soube desenvolver tecnologias para confecção de produtos que chegaram ao Ocidente desde a Roma Imperial, que buscava o luxo, a seda, onde sua riqueza fosse exibida.
Uma observação deve ser feita em relação à escrita. Pelo século 3 a.C. houve a homogeneização das normas gráficas, tornando-a mais acessível e até influenciando povos de idiomas diferentes do chinês, como coreanos, japoneses e vietnamitas por séculos. A indiferença da escrita diante de variações fonéticas permitiu a continuidade administrativa e cultural e, curiosamente, ter uso de verdadeira estenografia, como relata o “pai da história” Mohammad al-Râzi (888-955), que viemos conhecer pela “Crônica do Mouro Rasis”, do clérigo Gil Peres (século 14).
Nos quatro séculos da dinastia dos “Han” (206 a.C.-220 d.C.), o Ocidente viu a queda da sua mais expressiva construção societária, a lei romana, diante da religião cristã. Porém a China ultrapassa a dinastia dominante e dá aos chineses a percepção de participar da mesma civilização. Houve a crítica da pouco criativa Era Han, diante da efervescência dos Reinos Combatentes (475 a.C.-221 a.C.).
No entanto, como dispõe Anne Cheng (Histoire de la pensée chinoise, 1997): “A visão dos Han está na busca de um ponto de vista panorâmico a partir do qual seja possível ter a visão de conjunto sobre a proliferação das correntes precedentes, e de como integrá-las em conjunto coerente e sem exclusões”.
É célebre o diálogo entre o Imperador Gao Zu (202 a.C.-195 a.C) e o letrado Lu Jia:
“Gao: eu conquistei o império a cavalo, que necessidade tenho dos clássicos? Lu Jia replica: É a cavalo que se conquista o Império, mas será a cavalo que o Império deve ser governado?”
Embora as datações dependam dos critérios de historiadores, nem sempre em harmonia, a Idade Média Europeia é aceita como o período compreendido entre os séculos 5 e 15.
Para Europa foi período de retrocesso e estagnação, com a questão religiosa dominando as decisões políticas e sociais.
Se era a presença divina quem daria o sentido da vida para o europeu, para o chinês, a partir do século 3, quando finda a dinastia Han, um novo pensamento, mais individualista, vindo da Índia, ganha força. O budismo, que não é religião, mas o modo de ver e se comportar no mundo, onde “tudo é ilusão”.
Sidarta Gautama, o Buda, nasceu num pequeno reino onde hoje é o Nepal, e viveu, aproximadamente, durante o mesmo tempo que Confúcio, entre o quinto e quarto século antes da Era Cristã. Mas seus pensamentos, embora nenhum apele para o ser extraterreno, algum Jeová ou Deus cristão, são díspares.
Para Confúcio, é próprio do ser humano estar em contato com os outros e daí a importância dos ritos e dos nomes. A política, como já mencionamos, é a ação mais relevante.
Para Gautama é a abstração do mundo, da intencionalidade, a construção que cada pessoa faz do seu “eu”, que lhe possibilita atingir o Absoluto.
Tem-se o pensamento social contrapondo ao individual, um socialismo, que não está em Confúcio, mas na consequência de sua aposta no homem, versus o liberalismo excludente da atualidade ocidental.
O budismo ganha força na China a partir do século 5, com as práticas do yoga, a tradução de textos e a proliferação de estátuas de Gautama, numa concepção que mistura influências do oriente médio com as helenistas. Por três séculos ocorrem peregrinações budistas pelo território chinês. Também, por mais de 150 anos (1208 a 1368), a China sofre o domínio mongol.
A China, como a Europa, tem seu espaço invadido por ocupação ideológica e domínio político nos 13 primeiros séculos da Era Cristã. Na Europa começa a libertação com o Renascimento artístico, na China com a dinastia dos Song (séculos 10 e 11), restabelecendo a continuidade do “Tao”, o “caminho”, na sinergia entre o trabalho educativo e o engajamento político.
No entanto, por todo este período de ocupações, a China não deixou de desenvolver a tecnologia das manufaturas e o espírito leniente de quem conhece sua força e a capacidade de retomar o controle da própria história, as “características chinesas”.
O que não fora debate desde Mêncio (372 a.C.-289 a.C.), o mais importante seguidor de Confúcio, surge na discussão entre a mente (“xin”) e a natureza (“xing”), próxima ao fim do medievo: “O homem de bem é o primeiro a se preocupar com os tormentos do mundo e o último a se alegrar com suas soluções”.
Estamos chegando ao mundo moderno, pós-medieval, que vem acrescido das Américas, e com importantíssima participação africana. Ele será o objeto da continuidade destas reflexões sobre a unipolaridade e a multipolaridade do século 21.
Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.