Depois de nove meses internada na UTI da Casa de Saúde São José, no Humaitá, a cantora Nana Caymmi partiu, aos 84 anos, no último dia 1º, dois dias depois de completá-los. Nesse momento, estava acompanhada da filha Stella, que, ao lado da amiga Val Guimarães, que tinha por Nana uma relação de “mãe espiritual”, se revezavam no hospital dia após dia, para acompanhá-la e dar-lhe carinho e atenção. Sem perder a lucidez em nenhum momento, mesmo ligada aos aparelhos, Nana assistia, pela televisão, aos jogos de futebol e aos noticiários; fazia crochê e, ainda, gostava de estar informada sobre o que acontecia no mundo do entretenimento. Foi uma guerreira, mas não conseguiu vencer a grave arritmia cardíaca, que a levou às internações, necessitando, inclusive, de colocar um marca-passo. A cantora, como disse seu irmão Danilo, sofreu uma “overdose de opioides.”
Uma das vozes mais emblemáticas da música popular brasileira, Nana, filha do genial Dorival Caymmi e de Stella Maris, fez sua primeira aparição em disco, no álbum de seu pai, Acalanto, uma das suas canções preferidas e que esteve presente em todos os seus shows Brasil afora e em diversas partes do Mundo.
Carioca, foi morar, em 1959, na Venezuela, quando se casou com o médico Gilberto Aponte Paoli, pai dos seus três filhos. O divórcio aconteceu em 1966, quando ela retornou ao Rio de Janeiro. Nessa mesma época, se envolveu com o movimento Tropicália e com Gilberto Gil, com quem se casou um ano após ter voltado à Cidade Maravilhosa. Aliás, em seu velório no Theatro Municipal, Gil, acompanhada da mulher Flora, foi discreto e se aproximou para a última despedida, quando a urna funerária seria lacrada. Ao lado da ex-mulher, ele acariciou sua testa, falou baixinho algumas palavras, em ato de reverência não somente à artista, mas a mulher com quem viveu e foi parceiro musical.
O ano de 1966 foi intenso para Nana. Ela cantou Saveiros, no primeiro Festival Internacional da Canção, no Rio, e conquistou o primeiro lugar na fase nacional da competição, apesar das vaias da multidão, que preferiu a interpretação de Gal Costa de Minha Senhora, de Gil.
Nana se tornou uma figura controversa, não se sentindo em casa na cena da Tropicália nem no movimento da canção de protesto. Com apenas um sucesso marginal, encontrou trabalho cantando em casas noturnas de Língua Portuguesa fora do Brasil, na América do Sul. Na década de 1980, ela gravou vários álbuns para a EMI e apareceu no documentário de 1983, Bahia de Todos os Sambas.
Com um vozeirão extraordinário e carismática, Nana, na década de 1990, se tornou mais bem-sucedida no mainstream com seu álbum Bolero, que foi o seu primeiro de vários álbuns de ouro. Em 1995 e 1998, foi nomeada Melhor Cantora do Ano pela APCA. Em 2010, o diretor de cinema francês Georges Gachot lançou um documentário, Rio Sonata, sobre Nana.
Em seu álbum de 2013, Nana, com os irmãos Dori e Danilo, foi indicada ao Grammy Latino de 2014 de Melhor Álbum da MPB. Cinco anos após, recebeu outra indicação na mesma categoria, dessa vez pelo álbum Nana Caymmi Canta Tito Madi. Em 2021, recebeu outra indicação, dessa vez na categoria Álbum do Ano, pelo álbum Nana, Tom, Vinícius, o qual recebi com generoso autógrafo da cantora.
Nana cantou o amor durante toda a sua carreira. Mas também viveu histórias intensas e parcerias memoráveis. Com Gil, Nana compôs Bom dia, canção apresentada no III Festival de Música Brasileira. TV Record, em 1967. No ano seguinte, Nana e Gil estariam separados, mas não antes dela gravar compacto duplo, em que foi acompanhada pelos Mutantes de Rita Lee, cantando Bom dia, Alegria, alegria, de Caetano Veloso, O cantador e O penúltimo cordão, do irmão Danilo com Caetano e Sergio Fayne.
Nana também foi casada também com o pianista, arranjador e compositor João Donato, de 1972 a 1974, e com o cantor e compositor Claudio Nucci, de 1979 a 1984.
Nana, que anteriormente passara por uma cirurgia de remoção de um tumor cancerígeno na parte externa do estômago, depois desse susto, passou a viver “numa espécie de recreio”. Encastelou-se em casa, deixou de fazer shows e ignorou a onda de lives da pandemia, mas gravou um disco com a obra de Tito Madi, em 2019, e outro com a de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, no ano seguinte, fazendo estrondoso sucesso.
Nana tinha um estilo agressivo e, por essa razão, as pessoas tinham até um pouco de medo dela:
“Eu sou muito nua e crua, realista e taurina”.
A filha de Dorival Caymmi gravou discos fundamentais, como o Nana Caymmi, de 1975, e Voz e suor, de 1983, e que deu voz a um dos últimos sucessos da MPB clássica Resposta ao tempo, de 1998, e reforçou que basicamente só fez o que quis em sua carreira. Em certa ocasião, declarou: “Não pisei na bola no meu repertório, não gravei o que não queria ter gravado, teria feito tudo igual”, dizia a artista, que, no entanto, acreditava que “o povo cancelou o tipo de música” que ela fazia.
“Estou defasada, o canto não é mais uma coisa que se queira ouvir, os meus fãs estão velhos. Com o fracasso do disco, com a queda das gravadoras, com essa música que está sendo tocada no Brasil… Isso não é para mim! Não é que eu tenha me aposentado, me aposentaram. Sou águas passadas”. Nunca será!
Nana não alcançou a popularidade de Rita Lee, Elis Regina e Gal Costa, mas entrou para a história da música brasileira por não fazer uma só concessão na carreira. Na estreia como cantora, Elis foi obrigada a gravar um disco de rock, imitando Celly Campello, em Viva a Brotolândia, e Gal, conhecida no meio por não saber dizer não, sempre sofreu com o excesso de ingerência de empresários e produtores. Nana, não, o consenso entre produtores é que ela gravou sempre o que quis, quando quis, do jeito que quis, com um rigor profissional pouco visto.
A cantora deixa um legado extraordinário na MPB, e aponto algumas das suas canções que certamente ficarão gravadas, e para sempre, na memória e nos corações de todos nós: Só Louco, toda vez que Nana decidiu cantar o repertório do pai, fugiu do lugar comum, do caminho mais fácil e confortável. Na sua voz, a música, um samba-canção, gravado por Dorival em 1956, se tornou uma moderna e sofisticada peça com tons jazzísticos, uma prova da sua versatilidade, capaz de cantar qualquer gênero imprimindo o seu estilo tão peculiar; Sentinela, a canção, gravada fora da discografia de Nana, numa participação da cantora no disco Milton Nascimento, lançado em 1980, é um dos momentos mais bonitos da carreira da cantora e da história da música popular.
A letra de Fernando Brant virou um dos hinos de resistência da ditadura militar, cantada durante os desdobramentos da morte do estudante secundarista Edson Luís, assassinado por policiais na porta do restaurante Calabouço, no Rio, em 1968; Resposta ao tempo, muitos consideram essa interpretação o ponto alto da irretocável trajetória artística de Nana. A canção, parceria de Cristóvão Bastos e Aldir Blanc, uma das mais sofisticadas da dupla, deu à cantora o primeiro disco de ouro. Isso porque a música virou tema da minissérie Hilda Furacão, exibida pela TV Globo.
Dona de uma voz singular e vigorosa, Nana foi aplaudida, no Municipal, durante sete minutos ininterruptos pelos familiares, amigos e fãs que lotaram o teatro, antes de o corpo seguir para o São João Batista. Além de Gilberto Gil e Flora; Elba Ramalho, que fez questão de colocar, na urna, um terço sobre o peito da cantora; Guto Burgos, irmão de Gal Costa; Joyce; e Deolinda Catarina França de Vilhena, amiga de Nana há 44 anos, que a visitara no hospital no dia do seu aniversário e que regressara a Salvador, capital em que reside, viajou ao Rio novamente para dar-lhe o último adeus; dentre outros colegas de profissão que, sentidos, prestaram à Nana uma última homenagem. Tive a oportunidade de abraçar Dori e Danilo; de me solidarizar com Stella e Val e dar um até breve aquela que, sem dúvida, foi uma das maiores vozes do cancioneiro nacional.
A morte a aposentou, mas o legado de Nana Caymmi é imenso, e imortal.