Nélida Piñon deixa obra monumental e corajosa

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Nélida Pinon, Annita Gorodicht, Austregésilo de Athayde e Rachel de Queiroz, com Paulo Alonso (foto arquivo pessoal)
Nélida Pinon, Annita Gorodicht, Austregésilo de Athayde e Rachel de Queiroz, com Paulo Alonso (foto arquivo pessoal)

Nélida Pinon, Annita Gorodicht, Austregésilo de Athayde e Rachel de Queiroz, com Paulo Alonso (foto arquivo pessoal)

 

Talento literário impressionante e grandeza de comportamento

 

A morte da escritora Nélida Piñon pegou a todos de surpresa, pois, apesar dos 85 anos e da acentuada deficiência visual, Nélida se mantinha atuante e presente no cenário das letras nacional e internacional. E tanto isso era verdade que ela se encontrava em Lisboa, para os festejos do centenário de José de Sousa Saramago (1922–2010). Aproveitava a viagem e as comemorações e passaria uma temporada de três meses na Terra de Camões.

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Nélida era assim – dona do Mundo e reconhecida pela qualidade da sua literatura – gostava de permanecer em terras outras absorvendo cultura e, como Fernando Pessoa escreveu, uma verdadeira “antena do Mundo”. Portugal, Espanha e Miami, nos Estados Unidos, eram os principais países e cidade para as quais se deslocava com frequência, para fazer palestras e ser vivamente aplaudida e reverenciada. E foi essa mulher lúcida e brilhante, generosa e fraterna, delicada e amorosa que partiu, na última sexta-feira, deixando o Brasil mais pobre e sua gente sem o vigor das palavras, da inteligência e da sua suavidade.

Eu tive a honra e a felicidade de conhecer Nélida, em 1989, quando a escritora Rachel de Queiróz (1910–2003) fez a gentileza de me apresentar a Nélida, que, com o apoio irrestrito de Rachel, estava em campanha para a ABL. Esse primeiro encontro foi em uma solenidade, na então Faculdade da Cidade, em Ipanema, quando eu outorgaria o título de Doutor Honoris Causa ao jornalista e acadêmico Austregésilo de Athayde (1898–1996), presidente da Academia Brasileira de Letras.

Sempre afável e muito receptiva, Nélida me acolheu com extrema simpatia, quando comentou sobre sua candidatura à ABL e a vontade que tinha em pertencer à Casa de Machado de Assis. Enfatizou, agradecida, o apoio de Rachel à sua candidatura.

Nélida foi eleita, em 27 de julho de 1989, para a ABL, na sucessão de Aurélio Buarque de Holanda (1910–1989), sendo recebida, em 3 de maio de 1990, pelo Acadêmico Lêdo Ivo (1924–2012). Foi a quinta ocupante da Cadeira 30. Antes dela, tomaram posse Rachel de Queiroz, Dinah Silveira de Queiróz (1911–1982) e Lygia Fagundes Telles (1918–2022). Em 1996–1997, tornou-se a primeira mulher, em 100 anos, a presidir a Academia Brasileira de Letras, no ano do seu 1º Centenário. Foi, no Mundo, a primeira mulher a presidir uma academia de Letras.

Daquele primeiro encontro, muitos outros ocorreriam com o passar dos anos, em lançamentos dos seus livros; em colóquios literários; em recepções; na exposição das máscaras africanas do também acadêmico Antonio Olinto (1919–2009); na própria ABL; na Academia Carioca de Letras; nas homenagens aos acadêmicos que partiam… Sempre com um sorriso contagiante e muito vigor, Nélida se destacou não somente pelo seu talento literário impressionante e fantástico, mas pelos gestos e pela grandeza de seu comportamento.

A autora morreu em um hospital em Lisboa, depois de ter sofrido uma cirurgia, não resistindo ao pós-operatório. A ABL fará a Sessão da Saudade, no dia 2 de março, no Salão Nobre, em homenagem à autora.

Nélida Piñon estreou na literatura com o romance Guia-mapa, de Gabriel Arcanjo, publicado em 1961, que tem como temas o pecado, o perdão e a relação dos mortais com Deus. No romance A república dos sonhos, baseado em uma família de imigrantes galegos no Brasil, ela faz reflexões sobre a Galícia, a Espanha e o Brasil. Sua obra já foi traduzida em inúmeros países, tendo recebido vários prêmios ao longo de mais de 35 anos de atividade literária. Ganhou diversos prêmios, como o Pen Clube de Literatura por sua mais recente obra, Um Dia Chegarei a Sagres, lançada no final de 2020.

Nélida colaborou em vários jornais e revistas literários e foi correspondente no Brasil da revista Mundo Nuevo, de Paris, e editora-assistente de Cadernos Brasileiros. O início dos anos 70 é marcado pelo lançamento, em 1972, de um de seus melhores e mais conhecidos romances, A casa da paixão, que recebeu o Prêmio Mário de Andrade. Autora de mais de 20 livros, entre romances, contos, crônicas e infantojuvenis, sua obra foi traduzida em numerosos países.

Recebeu láureas das mais importantes e cobiçadas, nacional e internacionalmente, dentre tantas homenagens, o Prêmio Puterbaugh Fellow, 2004, oferecido pela Universidade de Oklahoma e a revista The World Literature Today. Primeiro escritor brasileiro a receber essa láurea, concedida anteriormente a Octavio Paz, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa; o Prêmio Príncipe de Astúrias, Letras, indicada por um júri formado por 20 intelectuais espanhóis, presidido pelo Presidente da Real Academia, Don Victor Garcia de La Concha, em Oviedo, Espanha. Entregue pelos Príncipes de Astúrias.

A autora chegou às últimas votações do júri ao lado dos escritores norte-americanos Paul Auster e Philip Roth e do israelense Amos Oz. Primeiro escritor de língua portuguesa a receber essa láurea; e o Prêmio Woman Together, entregue, na sede da ONU, por sua “implicação na consecução dos Objetivos do Milênio Através do Desenvolvimento da Mulher, a luta contra a pobreza, a educação, a arte e a cultura”

A obra de Nélida expande-se do romance à memória, do conto ao ensaio, mas mantém-se vinculada a sua natureza de quase-migrante que a manteve brasileira, mas não a desfez galega e ao seu profundo amor pela literatura. Nélida era uma apaixonada pela língua portuguesa e deixa um legado de dedicação à produção literária e um marco na participação feminina.

Uma das coisas que caracterizava Nélida era a doçura, a delicadeza no tratamento com as pessoas, e isso não é muito comum no meio literário. Sem dúvida, era a maior escritora brasileira viva e deixa uma obra monumental e corajosa. Foi uma escritora forte e robusta e uma mulher autodeterminada. Sua partida é uma perda das maiores e das mais sentidas, nesses últimos tempos, para o Brasil e para a literatura.

 

Paulo Alonso, jornalista, é reitor da Universidade Santa Úrsula.

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