Ney Latorraca, a estrela sobe

Ney Latorraca: ator e diretor que marcou a história das artes brasileiras com talento e personagens icônicos no teatro, cinema e TV. Por Paulo Alonso.

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Ney Latorraca
Foto: Divulgação / TV Globo

O Brasil amanheceu mais triste na última quinta-feira, dia 26 de dezembro, com a notícia da morte do genial ator e diretor Ney Latorraca, vítima de câncer, aos 80 anos.  Ao longo de cinco décadas de uma carreira bem-sucedida, interpretou uma variedade de personagens, sobretudo tipos cômicos, no teatro, na televisão e no cinema, arrebatando diversos e importantes prêmios, como o Troféu Imprensa, o APCA, o Arte Qualidade Brasil e o APTR, além de ter sido condecorado com a Medalha de Honra da Fundação Cesgranrio. Era titular da Academia Brasileira de Cultura. Ney foi velado no Teatro Municipal, com a presença do viúvo Edi Botelho, também ator, com quem Ney fora casado por 30 anos, de muitos e emocionados colegas e de uma legião de fãs que foram até à Cinelândia lhe prestar a última homenagem.

Nascido em Santos, em São Paulo, Ney era filho de Alfredo, um crooner, e de Tomaza, uma corista. Seus pais se apresentavam em cassinos. Teve como padrinho de batismo o genial e saudoso ator Grande Otelo. Dois anos após seu nascimento, um decreto do então presidente da República Gaspar Dutra fechou os cassinos, perdendo assim a sua família o seu principal meio de sobrevivência.

Ele sempre dizia à sua mãe que queria ser artista e que teria nascido para ser uma estrela. Ela o desaconselhava, pois não via futuro na carreira, uma vez que encontrou grande dificuldade para se manter e a sua família. Ney insistiu, e o Brasil ganhou um dos seus mais brilhantes e talentosos atores, versátil, inspirador e único. Tive o prazer e a honra de entrevistá-lo em várias ocasiões, seja nos momentos em que atuava nos palcos, seja nos sucessos acumulados na televisão. Entrevistei-o também quando trabalhou em O Beijo no Asfalto, com o icônico Tarcísio Meira – uma das lendas da televisão. Os personagens de ambos se beijavam, o que, para época, era algo inusitado e que foi muito comentado e criticado.

Com apenas 6 anos, fez participações na Rádio Record. Aos 19, passou em seu primeiro teste e fez Pluft, o Fantasminha, de Maria Clara Machado. Depois atuou no teatro estudantil e teve sua primeira oportunidade profissional em 1965. Por volta dos 20 anos, foi aprovado para integrar o elenco da peça Reportagem de Um Tempo Mau, de Plínio Marcos. A peça, no entanto, teve apenas uma apresentação no Teatro de Arena, sendo proibida pela Censura Federal.

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Após atuar em três peças encenadas por um grupo universitário, decidiu cursar a Escola de Arte Dramática da USP. Nos três anos de curso, teve aulas de história do teatro, expressão corporal, mitologia, mímica, esgrima, maquiagem, dicção e interpretação com notáveis professores, como Ziembinski e Antunes Filho. Sua madrinha de formatura foi Marília Pera, de quem se tornaria amigo inseparável.

Durante a década de 1970, atuou em vários espetáculos: Hair (1970), Jesus Cristo Superstar (1972), Bodas de Sangue (1973) e A Mandrágora (1975). Paralelo à carreira de ator, trabalhou, para sobreviver, em loja de roupa feminina, foi vendedor de pedras semipreciosas e funcionário de um banco.

A televisão o fascinava, mas as chances eram ainda remotas, porém, resiliente, buscou o seu espaço e conseguiu a fama e o sucesso com seu trabalho de alta performance. Ingressou na TV fazendo figuração na Tupi. Participou do seriado Alô, Doçura! e de Beto Rockefeller (1968). Por intermédio da atriz Lilian Lemmertz, foi contratado pela Record, trabalhando em cinco novelas: O tempo não paga e Quero viver, ambas de 1972; Eu e a moto, Vidas marcadas e Venha ver o sol na estrada, todas de 1973.

Sua estreia na Globo foi, em 1975, em Escalada, no papel do playboy Felipe, apaixonado pela professora de piano Fernanda, interpretada pela extraordinária Nathalia Timberg, que, aos 96 anos, ainda está nos palcos exibindo talento e profissionalismo. 

Em 1978, apresentou com a atriz Djenane Machado, o musical Saudade não tem idade, onde cantava, dançava e apresentava esquetes. Em 1979, atuou no musical teatral Lola Moreno. Em 1980, fez uma participação especial na novela Chega mais e, no mesmo ano, interpretou Leandro Serrano, em Coração alado. Em 1982, atuou na minissérie Avenida Paulista e no filme Das tripas coração.  No ano seguinte, esteve nos palcos na montagem de Rei Lear; atuou na minissérie Anarquistas graças Deus, de Zélia Gattai. Nesse mesmo ano, ainda marcou presença em outra minissérie da emissora, Rabo de saia, como intérprete do caixeiro-viajante Quequé, que tinha três mulheres. Em 1985, fez uma participação na minissérie Grande sertão: veredas; e participou de Um sonho a mais, onde teve a oportunidade de mostrar mais uma vez sua versatilidade ao interpretar cinco personagens diferentes, entre eles uma mulher, Anabela Freire, um dos grandes sucessos da trama. Nesse mesmo ano, esteve nas telonas em Ópera do Malandro e dirigiu Passando o Batom. Em 1986, integrou o elenco da minissérie Memórias de um gigolô, vivendo de forma extraordinária o desvairado Esmeraldo.

Na telinha, destacou-se interpretando personagens que marcaram a dramaturgia brasileira, como o vilão Mederix, em Estúpido Cupido (1975); o vampiro Conde Vlad, em Vamp (1991); o malandro Barbosa, no humorístico TV Pirata (1988 e 1989); o ingênuo Cornélio, em O Cravo e a Rosa (2000); e o picareta Edu, no folhetim Da Cor do Pecado (2004).

Dentre os relevantes papéis no cinema, consagrou-se encarnando de forma irretocável o Padre Anchieta, em Anchieta, José do Brasil (1976); e Arandir, no drama O Beijo no Asfalto (1980). Já nos palcos teatrais, encenou diversas peças, entre tantas a mais espetacular foi O mistério de Irma Vap, (1986), ao lado do consagrado ator Marco Nanini, com direção de Marília Pêra. A montagem permaneceu em cartaz por 11 anos e, pelo período em que ficou em cartaz, entrou para os Guiness Book. A peça inspirou o filme Irma Vap, o retorno (2006). Em 2017, o ator reprisou o papel de Vlad, no musical Vamp, ao lado de Claudia Ohana (2019).

Na década de 90, alternou trabalhos na Globo e no SBT. Ao mesmo tempo, encenou O Médico e o Monstro (1994), Don Juan (1995) e Quartett (1996). Em 1999, participou da montagem de O Martelo.

Em 2008, esteve no elenco de Negócio da China. Em 2014, na reta final de Meu pedacinho de chão, fez uma participação especial. Em setembro de 2017, pouco antes da estreia da temporada, em São Paulo, do musical Vamp, anunciou que se aposentaria depois daquele trabalho, pois não gostaria de mostrar ao público decrepitude. Porém, ainda viria a atuar, em 2019, na primeira temporada da série Cine Holliúdy. O ator participou remotamente do musical Seu NeyLa, que homenageou os 60 anos de carreira, em 2022.

Esse ator gigante, generoso e extraordinário nos deixou. Seu talento, a magia dos seus personagens, a exuberância da sua vivacidade e a sua versatilidade ilimitada, seu bom humor e sua inteligência brilhante continuarão guardados nas nossas memórias e em nossos corações.

Siga na luz, você, Ney Latorraca, é e será sempre uma estrela de primeira grandeza.

Obrigado, por tanto.

Paulo Alonso, jornalista, é reitor da Universidade Santa Úrsula.

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