Confirmada a demissão da ministra Nísia Trindade, da Pasta da Saúde, pode-se dizer que o presidente Lula cometeu um dos seus mais graves equívocos em seu terceiro mandato na Presidência da República. A popularidade de Lula está em baixa e chegou à marca dos 24%, segundo as últimas pesquisas realizadas. Que ele pode nomear e demitir qualquer um dos seus ministros, todos sabemos. O que ele não poderia e nem deveria é ter exposto uma pessoa com a qualificação de Nísia e com sua trajetória a uma situação vexatória e humilhante, sendo o seu nome, em toda a imprensa, veiculado como aquela que seria afastada da Saúde. Nísia não é política, é técnica e uma profissional com um belo currículo.
Nísia procurou, na semana passada, o gabinete da Casa Civil da Presidência da República, incomodada com toda essa situação, querendo saber se de fato seriam verdadeiras as notícias da sua demissão, e obteve a informação – desmentida nesta terça-feira – de que permaneceria à frente do ministério, um dos mais importantes e cobiçados pelos partidos do Centrão e, inclusive, pelo PT. O orçamento da Saúde é milionário, o que gera a cobiça dos parlamentares, sobretudo daqueles menos comprometidos com o Brasil e mais comprometidos com seus interesses pessoais e lobistas.
Assim, Nisia viveu um de seus piores momentos no governo com notícias diárias de que estaria demitida, mas faltaram informações claras do Palácio do Planalto. No último sábado (22), Nísia foi ao encontro de 35 anos do PT, aqui, no Rio, em que Lula teve participação de destaque. A ministra ficou lado a lado com Padilha, apontado como seu substituto, mesmo assim saiu de lá ainda como titular da Pasta, sem quaisquer indicações da troca. Uma situação dramática e até aética por parte de Lula que deixou sua ministra da Saúde na fritura, e publicamente – apesar de a própria Nísia, polidamente, ter negado a fritura, nesta quarta-feira, após a saída.
Importante lembrar que uma maior participação feminina na Esplanada dos Ministérios foi promessa de campanha de Lula. As reformas ministeriais, porém, têm atingido pastas comandadas por mulheres que acabam sendo substituídas por homens. Foi o caso de Ana Moser, no Esporte, e Daniela Carneiro, no Turismo, na mesma época em que Rita Serrano foi demitida da presidência da Caixa.
A escolha por Padilha, que já comandou o Ministério da Saúde, ocorre por conta da articulação que ele já faz com o Congresso. Entre os objetivos a curto prazo, Lula quer agilizar o programa Mais Acesso a Especialistas e a campanha de combate à dengue, a fim de evitar um surto como o do ano passado.
Nísia Trindade Lima foi a primeira mulher a chefiar o Ministério da Saúde. A ministra também foi a primeira mulher a presidir a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição histórica de ciência e tecnologia e referência internacional, entre 2017 e 2022.
Nísia é doutora em Sociologia (1997), mestre em Ciência Política (1989) pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj – atual Iesp) e graduada em Ciências Sociais pela Uerj, 1980. Toda a sua atuação como gestora e intelectual está baseada na promoção do valor social da ciência no Brasil e na realização de ações que aproximem a ciência da sociedade.
É pesquisadora plena da Casa de Oswaldo Cruz da Fiocruz, professora de pós-graduação do Programa de História da Ciência e da Saúde e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Iesp/Uerj. É também professora associada de Sociologia da Uerj, além de autora de livros e artigos com ênfase no pensamento social brasileiro, história das ideias em saúde pública e processos brasileiros de construção do Estado Nacional.
Como presidente da Fiocruz esteve na linha de frente, coordenando os esforços institucionais da Fiocruz em resposta à Pandemia da Covid-19, desde seus estágios iniciais. Em dezembro de 2020 foi eleita membro titular da Academia Brasileira de Ciências na categoria Ciências Sociais, e em 1º de janeiro de 2022 tornou-se membro da Academia Mundial de Ciências para o avanço da ciência nos países em desenvolvimento. Em setembro de 2021, tornou-se membro independente do Conselho da Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias e recebeu o grau de Cavaleira da Ordem Nacional da Legião de Honra da França, oferecido pelo Governo da França, em reconhecimento pelo seu trabalho nas áreas da ciência e da saúde e pelos serviços prestados à sociedade na resposta à pandemia de Covid-19. Nísia também copresidiu o Grupo Diretor de Recuperação Econômica, um dos cinco grupos diretores criados para auxiliar no desenvolvimento de um roteiro de pesquisa das Nações Unidas para a recuperação da Covid-19.
A atuação de Nísia, que não curte os holofotes e que trabalha com discrição, foi notável. Ela reconstruiu o Ministério da Saúde destruído pelo Governo Bolsonaro, que teve, nessa Pasta, de pesquisador a general; reverteu a tendência de queda da cobertura vacinal; ampliou em 100% a gratuidade da Farmácia Popular; dobrou o tamanho do Mais Médicos; incorporou novas vacinas ao SUS; esteve presente em todas as reuniões do Conselho Nacional de Saúde, ouvindo, debatendo, participando; instalou a Estratégia Antirracista do Ministério da Saúde; e fez tudo isso e muito mais em apenas dois anos, com seriedade e respeito ao povo brasileiro. E, por essa simples razão, Nísia Trindade merecia ser tratada com respeito e decoro.
Nísia nasceu no Rio de Janeiro, em 1958, crescendo no Flamengo. Por inspiração de uma professora de sociologia durante o ensino médio, Nísia decidiu cursar Ciências Sociais. Envolvida, na graduação, ao movimento estudantil pró-democracia, participou da construção do Centro Acadêmico de Ciências Humanas da universidade. Ao se formar, ingressou como professora na rede estadual e particular da cidade.
Em 1982, iniciou o mestrado em Ciência Política, apresentando a dissertação “O Movimento de Favelados do Rio de Janeiro: Políticas do Estado e Lutas Sociais”. Ainda na elaboração de sua dissertação, ingressou, em 1987, como pesquisadora na Casa de Oswaldo Cruz, cuja missão é a pesquisa histórica sobre as ciências e a saúde e como elas são fundamentais para a reflexão crítica sobre a sociedade brasileira. Em 1992, deu início ao seu doutorado, defendendo a tese ‘Um Sertão Chamado Brasil”. Ganhou o Prêmio de Melhor Tese de Doutorado em Sociologia no Iuperj e foi publicada em livro pela editora da instituição.
Foi chefe do departamento de pesquisa da COC (1989–1991), vice-diretora (1992–1994) e diretora da unidade entre 1998 e 2005. Foi membro da equipe de elaboração do projeto do Museu da Vida, inaugurado, em 1999. Em 2000, recebeu a Medalha do Centenário da Fiocruz. Como diretora da COC criou o Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde, em 2000.
Primeira mulher a comandar a Fiocruz em 120 anos de história da instituição, durante seu mandato coordenou, em 2018, a Rede Zika Ciências Sociais, parte da Zika Alliance Network com parceria com 54 entidades parceiras no mundo. Integrou programas internacionais de história da ciência e da saúde e ainda em 2018 foi membra de grupo do Plano de Ação Global da OMS, que tem por finalidade otimizar a pesquisa dos sistemas de saúde nos países; no ano seguinte, integrou o corpo consultivo da OMS para a Agenda 2030 sendo neste ano copresidenta da Rede de Saúde para Todos da UNSDSN.
Liderou as ações da Fiocruz no enfrentamento da pandemia de Covid-19, no Brasil. Dentre as iniciativas, estãoː a criação um novo Centro Hospitalar no campus de Manguinhos; coordenação no país do ensaio clínico Solidarity da OMS; aumento da capacidade nacional de produção de kits de diagnóstico e processamento de resultados de testagens; organização de ações emergenciais junto a populações vulneráveis; oferta de cursos virtuais, para profissionais do SUS, de manejo clínico e atenção hospitalar para pacientes de Covid-19; lançamento de manual de biossegurança em escolas; e a Fiocruz tornou-se laboratório de referência para a OMS em Covid-19 nas Américas.
Foi responsável pela criação do Observatório Covid-19, rede transdisciplinar que realiza pesquisas e sistematiza dados epidemiológicos, monitora e divulga informações, para subsidiar políticas públicas sobre a circulação do novo coronavírus e seus impactos sociais em diferentes regiões no Brasil.
Ao assumir oficialmente a pasta da Saúde, a ministra afirmou que sua gestão à frente da Saúde seria pautada pelo diálogo com a comunidade científica. Também anunciou a revogação de decretos e normativas do Governo Bolsonaro que, segundo ela, ofendem a ciência, os Direitos Humanos e os direitos reprodutivos.
Em 2023, a ministra Nísia Trindade decretou estado de emergência em Saúde Pública na terra indígena Yanomani, localizada em Roraima, por conta da morte de crianças por desnutrição.
E é essa pesquisadora sênior, com relevantes serviços prestados ao Brasil, conhecida internacionalmente, que foi afastada da Pasta da Saúde, por interferência e pressão partidária e fraqueza do próprio presidente da República.
Paulo Alonso é jornalista.