Nome sujo na praça

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Direito não é ciência exata, não vive de unidades absolutas nem de verdades aceitas sem qualquer comprovação. É uma ciência da linguagem, antes de tudo, por isso nem tem vocabulário próprio, e se apropria de termos e construções de outras áreas do conhecimento e os torna seus, que passam, a partir daí, a ser vistos e tratados como “verdades dogmáticas”, “postulados jurídicos”.
Tem-se por certo que a origem da expressão “nome sujo na praça” está no costume que os antigos comerciantes tinham de se reunir em praças para trocar informações confidenciais sobre o caráter dos compradores, se pagavam pontualmente ou tinham o hábito de dar calote. O homem comum, quando diz que um sujeito está com o “nome sujo na praça”, quer dizer que se trata de um caloteiro, de mau pagador, desonesto, que vive de pequenos expedientes e se locupleta à custa do outro de boa fé. Ter o “nome sujo na praça” traz, evidentemente, consequências jurídicas, por isso o Direito se apropria do conceito vulgar e diz, de modo erudito, aquilo que o leigo sabe de cor.
Por certo ninguém ignora que, quando alguém toma conhecimento de que seu nome “está sujo na praça”, passada a surpresa, vem a indignação e, por fim, se o nome está “sujo” indevidamente, os olhos se enchem dum brilho inconfundível pela possibilidade de obter polpuda indenização pela lama que o outro espalhou sobre a sua reputação. Isso é da natureza humana. Há um demandismo latente incrustado na alma de cada um de nós, admitamos ou não.
Ter o “nome sujo na praça” pode decorrer do descumprimento de uma obrigação, como por exemplo, a emissão de um cheque que, apresentado ao banco, é devolvido por insuficiência de fundos do emitente. A quantia não importa. O credor já pode apresentar o cheque a um cartório de protestos. É uma faca de dois gumes, como dizem. O credor não é obrigado a protestar o cheque para cobrar judicialmente a sua dívida. Tem o direito de dar publicidade, através do protesto, de que não recebeu o crédito. Direito, e não obrigação. O exercício de todo direito implica riscos, pois atrelado a cada direito há também um dever.
É claro que, se consultar um advogado, no mesmo o dia o título será apontado ao cartório de protesto, pois é o meio mais rápido que o credor tem para receber a dívida representada por um título ou por um documento de dívida, sem precisar ajuizar ação. Apontado o título ao cartório, o devedor deve pagar a dívida em até três dias, pena de “ter o seu nome sujo”, e na boca do povo. Enquanto não quitar a dívida, o nome do devedor, devidamente protestado, constará de todas as certidões de protesto emitidas pelos cartórios e banco de dados do Serasa, do SCPC ou de outros órgãos restritivos de crédito. Constar de uma dessas “listas negras” limita a vida pessoal e comercial de qualquer cidadão ou empresa, tal como cancelamento de conta corrente, restrições de crédito, proibição de participar de licitações etc.
O ministro Ruy Rosado de Aguiar, no REsp. 22337/RS, registrou que “o SPC, instituído em diversas cidades pelas entidades de classe de lojistas, tem a finalidade de informar seus associados sobre a existência de débitos pendentes por compra dos que pretendam obter novo financiamento”. Precisa, a decisão. A finalidade do protesto é somente dar publicidade da existência de dívidas não pagas. Nada além disso. Mas algumas empresas e órgãos públicos estão desvirtuando a finalidade dos cadastros restritivos de crédito. É princípio de direito que o edital faz lei entre quem oferece um posto de trabalho e quem a ele se habilita. Em tese, portanto, um edital pode conter qualquer restrição, desde que não fira princípios constitucionais, como os da dignidade da pessoa humana ou o do acesso de qualquer pessoa aos cargos prometidos, desde que satisfaça às exigências para o cargo ou função anunciados.
Essas restrições, contudo, somente são legítimas quando se referem, especificamente, à natureza do cargo oferecido. Recentemente, a mídia divulgou que se pretendia vedar o acesso aos concursos públicos de candidatos com o “nome sujo”. Ou seja: queriam institucionalizar o “antisujismo público”. Baseado em qual fundamento jurídico seria possível proibir um candidato de se inscrever num concurso público apenas porque, numa relação privada, pessoal, teve ou pode ter tido um revés e foi “negativado”? Contraditoriamente, há vagas destinadas a portadores de deficiências, cotas para esses, cotas para aqueles. Se o papel do Estado é acabar com a discriminação e incentivar a igualdade, que razões jurídicas autorizariam obstar o acesso de alguém com o “nome sujo” ao emprego público se isso talvez represente a única maneira que ele tem de se capitalizar, reerguer suas finanças domésticas e buscar um futuro melhor, realizar um sonho, um ideal de vida?
Em vez de estimular posturas discriminatórias e inconstitucionais como essas, os editais deveriam exigir mais rigor nos exames psicotécnicos. Sim, eu sei, “de perto ninguém é normal”, como o disse Caetano, mas uma aparência de normalidade ao menos de longe já seria animador. Se a moda pega, o Judiciário muito depressa será invadido por um enxame de ações indenizatórias por danos morais, alimentando ainda mais uma indústria que já está levando os juízes à exaustão.
“Sujo” não é quem sofre um insucesso na vida, quem perde o emprego da noite para o dia e não consegue pagar o plano de saúde, a escola do filho, a compra do material escolar ou de uma geladeira nova. Na verdade, sujo é aquele que age de forma discriminatória, que enriquece à custa dos outros ou usa da justiça para ganhar dinheiro fácil. Como já disse um conhecido sociólogo, “quando a igualdade me prejudica, exijo a diferença; quando a diferença me discrimina, exijo a igualdade”. É preciso não confundir alhos com bugalhos. É preciso separar o joio. Fica aqui o meu protesto!

Mônica Gusmão
Professora de Direito.

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