Nova ordem legal

97

Analisando as evidências do pós-maio de 2005 e suas subsequentes CPIs e do exercício democrático do referendo de 23 de outubro, que delega ao povo brasileiro o direito de restringir seus próprios direitos de escolha, com consternação observamos haver uma nova ordem legal no país.
Torna-se normal e aceitável o que era antes ilícito e imoral e se considera criminoso ou imputável de pena tudo o que venha a ser contrário a essa “nova ordem”. É fácil justificar falta de provas quando estas existem com fartura. É simples doutrinar como “denuncismo” o que sempre foi corrupção ou fraude.
É banal declarar inocência ainda que a convicção seja lenta e gradual, por conveniência. É melhor proibir do que educar, melhor restringir do que ensinar a escolher, melhor tratar o povo, por definição, como massa de manobra do que o inserir na verdadeira opinião pública.
Esse ambiente e contexto, ampliados pela já tradicional impunidade ampla, geral e irrestrita, constróem, infelizmente, os valores e crenças da sociedade brasileira, abrindo espaço para cenários contraditórios permanentes.
É possível diagnosticar tais problemas a partir da análise de alguns indicadores, do comportamento dos distintos mercados e até mesmo dos problemas que enfrentam. Nesse sentido, é interessante verificar o que ocorre no universo dos documentos fiscais.
O modelo de fiscalização de arrecadação de tributos está em franca transição no Brasil. A partir de know-how da Secretaria da Receita Federal, que há mais de dez anos vem-se aprimorando em substituir o arcaico modelo de fiscalização por fiscais de livros in loco pela automação e flexibilidade de cruzamentos de bases de dados, também os fiscos estaduais vêm reduzindo os aparatos e recursos alocados na atividade de fiscalizar.
A expectativa é de que, em breve, os estados tenham a mesma eficiência e solução tecnológica. Já existe o convênio entre a Receita Federal e todas as secretarias estaduais de Fazenda, congregadas no Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz).
Muito em breve não existirá mais a necessidade de inscrição estadual. O CNPJ será a identidade da pessoa jurídica em todo o país e as bases de dados de IPI, PIS Cofins, CPMF e IRPJ serão mutuamente cruzadas com as de ICMS e, num passo adiante, também com outros impostos estaduais e municipais.
Neste ínterim, o sentimento de liberdade de escolha pela evasão fiscal está disponível e as impunidades e a sensação de estar inatingível crescem e aparecem.
Neste contexto, há uma informação emblemática: dados da Associação Brasileira da Indústria de Formulários, Documentos e Gerenciamento da Informação (Abraform) indicam que a queda de emissão de documentos fiscais no Brasil foi fisicamente muito significativa a partir dos primeiros meses de 2005, em relação ao mesmo período de 2004, sem que houvesse substituição tecnológica ou redução de crescimento econômico que a justificassem.
Nos primeiros seis meses deste ano, a diminuição de toneladas de papel processado para produção de documentos fiscais chegou a quase 14% (situação inusitada nos últimos 20 anos neste segmento de mercado), agravada pela queda de PIB isolada no Rio Grande do Sul e não compensada pelo crescimento da economia, da industria e até da redução de desemprego.
Este expressivo recuo na produção de documentos fiscais reflete, contudo, uma queda da arrecadação de ICMS consolidado no país, que só não foi maior porque, a exemplo do Rio Grande do Sul, houve aumentos significativos de alíquotas desse imposto, em segmentos da indústria bem controlados (petróleo e seus derivados, telecomunicações, energia elétrica e algumas commodities agrícolas).
Ou seja, compensou-se a queda geral de arrecadação com maior carga tributária sobre segmentos industriais e de serviços de alta significação na renda dos estados.
Esperava-se uma recuperação gradual deste cenário sombrio na produção de documentos fiscais no segundo semestre, como historicamente já aconteceu em anos nos quais a demanda dos primeiros seis meses estava aquém do previsto. Em 2005, porém, foi diferente: não há reação significativa.
Este é o resultado da opção pela “nova ordem legal”, estimulada por atos impunes, como mensalões e caixas 2. Aliás, se estes são tão normais para partidos, porque não para contribuintes sobrecarregados de tributos e em busca de sobrevivência ou para oportunismos tão bem aceitos nos meios políticos?
Bingos, superfaturamentos em editais estatais de licitação, madeira cortada e exportada por vias indiretas, direitos humanos especiais para criminosos e traficantes, Banestados que viraram pizza e muitas outras estranhas situações…
Venha a nota fiscal eletrônica e vamos agora experimentar novas tecnologias de evasão de impostos. Que, ao menos, as secretarias estaduais de Fazenda aprendam com a Receita Federal como gerar superávits e recordes de arrecadação, para, quem sabe, em futuro próximo, a verdadeira distribuição de renda comece pela redução da carga tributária e isonomia de tratamento a todos, sem exceção.
Enquanto isto, as gráficas signatárias da Abraform farão a reestruturação de suas plantas industriais para os novos tempos, acrescentando mais alguns desempregados aos milhões já existentes no país.

Marcos da Cunha Ribeiro
Engenheiro mecânico, economista e vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria de Formulários, Documentos e Gerenciamento da Informação (Abraform).

Espaço Publicitáriocnseg

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui