Nuclearização das Forças Armadas

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A nuclearização das Forças Armadas brasileiras inclui três aspectos: o dos vetores de lançamento de armas nucleares, o das armas propriamente ditas e o dos usos militares não-explosivos da energia nuclear – dos quais a propulsão de submarinos é, sem dúvida, o mais dramático. O desenvolvimento de um programa nuclear independente pelo Brasil, a partir do final da década de 70, gerou suspeitas, no exterior, de que nosso país estava procurando construir armas nucleares. O suposto desenvolvimento, pela indústria nacional de defesa, de vários projetos de mísseis balísticos de médio alcance reforçou tais suspeitas – embora os projetos em pauta, na verdade, jamais tenham ido além do estágio inicial (estudos de viabilidade com simulações em computador).
Para justificar o boicote internacional ao programa espacial brasileiro, em especial ao projeto da Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), o Veículo Lançador de Satélites (VLS), que será utilizado para lançar satélites de fabricação nacional, foi freqüentemente descrito como “míssil balístico”. Na verdade, a tecnologia de vetores de lançamento espacial constitui uma “tecnologia dual” (de aplicação civil e militar), pois os foguetes utilizados são semelhantes aos vetores de lançamento de armas nucleares. A longo prazo, porém, a capacidade de colocar cargas úteis em órbita representa, em si mesma, uma dissuasão muito mais eficaz do que a representada por aeronaves de ataque ou por mísseis balísticos de alcance médio ou intermediário.
Embora a colocação de armas nucleares em órbita seja proibida por tratado, a importância militar da tecnologia de satélites é enorme. As comunicações por satélite são muito menos vulneráveis que as radiocomunicações convencionais à interferência de contramedidas eletrônicas (CME) e às condições ambientais de propagação anômala dos sinais de rádio. Os satélites militares de vigilância e observação, equipados com sensores remotos (fotografia, TV, infravermelho, radar etc.), constituem hoje o principal meio de coleta de informes (normalmente em tempo real) à disposição das grandes potências. Pelo apartheid tecnológico, o acesso a tais tecnologias é vedado a potências médias, como o Brasil. A fim de “desmilitarizar” o programa espacial, o Governo Federal criou a Agência Espacial Brasileira (AEB), desvinculada do Ministério da Aeronáutica e do Estado-Maior das Forças Armadas (Emfa).
Em setembro de 1987, o então presidente José Sarney, anunciou oficialmente o domínio completo do ciclo de enriquecimento do urânio pelo Brasil, utilizando o método da ultracentrifugação. Esta etapa era essencial para o desenvolvimento das aplicações civis e militares do programa nuclear brasileiro. Em setembro de 1990, Fernando Collor de Mello, então recém-empossado como presidente, revelou a suposta existência de um projeto de pesquisa e desenvolvimento de armas nucleares no Brasil, denominado “Projeto Solimões”. Collor ordenou o cancelamento daquele projeto e o fechamento de um poço, supostamente destinado à realização de explosões nucleares subterrâneas de caráter experimental – o qual teria sido aberto no início dos anos 80, na Serra do Cachimbo, no sul do Pará, e jamais utilizado.
No final de 1990, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado Federal (cujo relator foi o senador Severo Gomes, já falecido) concluiu que o Brasil já tinha a capacidade tecnológica necessária para produzir armas nucleares – desde que tomasse a decisão política de fazer isso. Atualmente, porém, a única finalidade militar do programa nuclear brasileiro é o desenvolvimento da tecnologia de propulsão nuclear para submarinos – a cargo da Marinha e do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) da Universidade de São Paulo. Tal intento, reconhecido pela Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea), estava consignado no acordo de verificação assinado pelo Brasil e pela Argentina com aquele organismo internacional, no final de 1991. Este acordo deu seqüência ao acordo bilateral firmado pelos dois países em novembro de 1990.
A posterior adesão do Brasil ao Tratado de Tlatellolco, que proíbe o desenvolvimento, o uso e o trânsito de armas nucleares na América Latina, formalizou a renúncia, pelo país, à posse de tais armas. Tal renúncia foi, mais uma vez, confirmada pela adesão de nosso país ao tratado que proíbe a realização de testes nucleares, e pelo seu ingresso no Regime de Controle da Tecnologia de Mísseis, ou MTCR (Missile Technology Control Regime). Portanto, a assinatura pelo Brasil, no final de 1997, do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP) foi um ato desnecessário e inaceitável de submissão.
Fora do contexto do equilíbrio nuclear entre as antigas superpotências, a nuclearização das Forças Armadas brasileiras envolveria dois aspectos fundamentais: a dissuasão e o risco. A posse de armas nucleares aumentaria consideravelmente a capacidade de dissuasão do Brasil – elevando o patamar de risco, para qualquer adversário em potencial, de uma ação militar contra nosso país. Mesmo a incerteza, quanto à existência ou não de tais armas, já seria uma forma de dissuasão. Em contrapartida, o Brasil se tornaria um alvo legítimo para um ataque nuclear, caso o adversário dispusesse de tal tipo de armamento, e estivessem em jogo interesses vitais.
Como nosso país não dispõe de armamento nuclear, adversários mais poderosos teriam tempo suficiente para tentar, por todos os meios, abortar seu desenvolvimento pelo Brasil – inclusive através do seqüestro ou assassinato de cientistas, ou de ataques preventivos (sem declaração de guerra) às instalações de pesquisa e desenvolvimento e de produção de armas nucleares. Isto sem mencionar a possibilidade de uma “corrida nuclear” na América do Sul, invalidando todos os esforços de cooperação e integração no continente. Aparentemente, o risco estratégico envolvido na aquisição de armamento nuclear pelo Brasil seria superior à capacidade de dissuasão que o país pudesse vir a obter, com tal aquisição. O caso da propulsão nuclear de submarinos, porém, seria inteiramente diferente.
A posse de submarinos nucleares de ataque (SSN), ainda que em número reduzido (complementados por um número maior de submarinos com propulsão convencional), daria às Forças Navais brasileiras uma substancial capacidade de dissuasão contra bloqueios ou outras ameaças vindas do mar, mesmo no caso de adversários mais poderosos – uma vez que a principal característica deste tipo de belonave é exatamente a discrição. No início do Século XXI, uma Marinha que não dispuser de submarinos de propulsão nuclear terá reduzida utilidade militar. A motivação dominante do lobby internacional contrário à posse de submarinos de propulsão nuclear por países como o Brasil não é de cunho ecológico-pacifista, e sim de natureza militar, pois tais belonaves afetariam, ainda que de forma marginal, a liberdade de movimentos das Marinhas das grandes potências.
O custo da nuclearização das Forças Armadas de um país, assim como o da aquisição de capacidade espacial, é extremamente elevado. Entretanto, o Brasil poderia ser “empurrado” para o desenvolvimento e a produção de armas nucleares, caso surgisse uma grave ameaça à segurança externa ou à própria sobrevivência do país. Um conflito de média intensidade e de média ou longa duração provocaria grande perda de vidas humanas, além de grandes prejuízos materiais. Se a sociedade brasileira se sentisse seriamente ameaçada, poderia a optar pela dissuasão nuclear, como forma de evitar a guerra – pois tal opção teria um custo menor do que a constituição de Forças Armadas numerosas, empregando apenas armamento convencional. Tal hipótese, porém, constitui hoje mera especulação histórica – a menos que a situação mundial tome rumos inesperados e indesejáveis, levando à implosão dos tratados de não-proliferação nuclear.

Eduardo Italo Pesce
Pós-graduado em Relações Internacionais, coordenador e professor do Programa Especial de Desenvolvimento da Inteligência e da Criatividade (Pedic) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), conselheiro do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos (Cebres) e colaborador de Segurança & Defesa e da Revista Marítima Brasileira.

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