O primeiro semestre de 2022 nos trouxe o abrandamento das medidas restritivas impostas pela pandemia causada pelo coronavírus, mas os efeitos da crise econômica substancialmente agravada pela Covid-19 ainda persistem e não têm data para acabar.
E nesse contexto de crise, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) ainda aprovou um índice de reajuste de mais de 15% para os planos de saúde individuais, sendo este o maior reajuste da história desde o início da vigência da Lei dos Planos de Saúde, a Lei n. 9.656, de 1998.
Esse reajuste incidirá apenas nos contratos de planos de saúde individuais, que representam pouco mais de 18% do número de usuários, mas o que deixa o mercado de saúde suplementar ainda mais inquieto é que esse índice serve de referência para as operadoras estabelecerem o reajuste dos contratos coletivos, usualmente bem acima do teto de reajuste dos contratos individuais.
Diferentes tipos de contrato – Diferentes formas de reajuste
Enquanto o índice de reajuste dos contratos individuais de plano de saúde é estabelecido pela ANS, o reajuste dos planos de saúde coletivos é determinado pelas operadoras de saúde sem nenhum tipo de intervenção, regulamentação ou fiscalização por parte da ANS.
Para o reajuste dos planos de saúde coletivos, vale o que estiver previsto no contrato, segundo informa a própria ANS. Nos contratos coletivos, o aumento anual é composto por dois diferentes tipos de reajuste: um que reflete a variação dos custos médicos e hospitalares e outro que decorre da sinistralidade do contrato, sendo este último o mais controverso.
Para aplicar o reajuste de sinistralidade, as operadoras apuram o valor arrecadado com o pagamento das mensalidades dos usuários de um determinado contrato, deduzindo-se desse montante o custo dos serviços médicos utilizados pelos usuários desse mesmo contrato, além de uma margem técnica de lucro que, em geral, é de 20 a 30%.
Se o contrato não proporcionar o lucro almejado, toda a estimativa de lucro não alcançada e até mesmo o eventual prejuízo desse contrato é repassado ao consumidor na forma de um reajuste que, como já mencionado, não tem teto, fiscalização ou regulamentação.
Com isso, a operadora consegue repassar para o usuário todo o risco de sua atividade empresarial, sem a mínima preocupação com a gestão das despesas assistenciais (custos médicos).
E isso é feito de forma individualizada para cada contrato coletivo com 30 ou mais beneficiários, de forma que duas empresas com o mesmo tipo de plano de saúde contratado perante a mesma operadora podem ter reajustes completamente destoantes uma da outra.
A exceção vale para os contratos coletivos com até 29 beneficiários, em que se exige a apuração da sinistralidade entre o total desses contratos em uma mesma operadora.
Essa apuração conjunta da sinistralidade é benéfica para os consumidores desse segmento, pois quanto maior é o número de pessoas, maior é a mitigação do risco e menor é o reajuste, regra básica do mutualismo, princípio fundamental de qualquer tipo de seguro.
Efeitos da alta do reajuste dos planos individuais já podem ser vistos – Por força da Resolução Normativa nº 309/2012, da ANS, as operadoras de saúde devem divulgar até o dia primeiro do mês de maio de cada ano o seu índice de reajuste para o agrupamento de seus contratos coletivos com até 29 usuários.
No início de maio, ainda não havia sido divulgado o índice oficial de reajuste dos planos individuais, mas a mera previsão do mercado de que esse índice seria de aproximadamente 16% já foi suficiente para que o índice do agrupamento de contratos com até 29 usuários de cada operadora quase extrapolasse 20% de reajuste. E para os contratos coletivos com 30 ou mais usuários o risco de reajustes superiores a 20% é ainda maior.
Aumento do número de beneficiários de planos de saúde em 2021 – Após anos de retração desse setor de serviço, o mercado de saúde suplementar apresentou, surpreendentemente, um grande aumento do número de beneficiários de planos de saúde em 2021. E isso na contramão da crise financeira e econômica já agravada pela pandemia causada pelo coronavírus. O país chegou a contar com 48.998.883 pessoas com planos de saúde em dezembro/2021. Em março de 2022, esse número ultrapassou a marca de 49 milhões de usuários, chegando a 49.074.356.
E a razão do aumento de usuários não foi outra senão a própria pandemia da Covid-19. Afinal, o brasileiro estava com receio de precisar de assistência médica e não poder contar com o SUS em plena pandemia por conta da lotação de hospitais e falta de leitos. A alternativa do brasileiro foi apertar ainda mais o orçamento e contratar planos de saúde para garantir o atendimento médico em caso de necessidade. Vale destacar que, em regra, esse mercado cresce quando a economia vai bem e diminui quando a economia vai mal.
Seguindo essa regra, o mercado cresceu até 2014, chegando a atingir o total de 50.531.748 usuários de planos de saúde ativos em dezembro/2014. Com a crise econômica que se iniciou em 2014/2015, mais de 3 milhões de usuários perderam o plano de saúde nos anos que se seguiram, uma parte porque não conseguiu mais fazer frente a essa despesa e outra parte mais significante porque perdeu o emprego e junto com ele o benefício do plano de saúde.
E o número de usuários de planos de saúde se manteve relativamente estável entre os anos de 2016 e 2020, com pouco mais de 47 milhões de beneficiários desse serviço até termos o surpreendente aumento desses consumidores em 2021.
Queda do número de beneficiários é praticamente certa no biênio 2022/2023 – Se o brasileiro, mesmo em um cenário de crise e incertezas, fez tudo o que podia para contar com serviços de assistência médica privada em 2021 por receio de não ter acesso a serviços de saúde na rede pública, o ano de 2022 não vai ajudar a manter esses contratos.
A crise econômica está longe de acabar e o brasileiro ainda não recuperou seu poder de compra. A inflação em 2022 está comprometendo ainda mais a renda do consumidor, renda essa que não foi reajustada no mesmo patamar do aumento que vem sendo aplicado para produtos e serviços.
E, diante dos reajustes extremamente elevados e injustificados dos planos de saúde, sem nenhuma correlação com a inflação e com a correção da renda do consumidor, é provável que tenhamos um cenário semelhante ao de 2015/2016, com muitas rescisões, seja por decisão do consumidor ou pior, por inadimplência.
Lembrando que a causa mais importante que levou o cidadão a contratar planos de saúde em 2021 já não se mantém. Os hospitais do SUS não estão mais lotados e sem leitos disponíveis como aconteceu durante a pandemia. E, embora as operadoras justifiquem esse reajuste sob a alegação de que o setor sofreu um prejuízo de aproximadamente 920 milhões em 2021, não se pode esquecer que o lucro de 2020 foi de 18,7 bilhões.
Ainda falta muito para amortizar esse lucro extraordinário das operadoras de saúde em 2020, mas quem vai pagar essa conta de 2021 e sem a devida compensação pela não utilização dos serviços em 2020 vai ser o consumidor e a expectativa é que muitos deixem de contar com esse serviço e voltem a sobrecarregar o sistema de saúde público.